Información
Equipo Nizkor
        Tienda | Donaciones online
Derechos | Equipo Nizkor       

14fev17


"Em termos práticos, o governo de Nicolás Maduro se tornou uma ditadura"


Margarita Lopez Maya é uma intelectual venezuelana nascida em Nova York, autora de diversos livros e artigos sobre a história do país bolivariano, que agora vive grave crise econômica e de abastecimento, tingida pelo sangue da violência política entre lados altamente polarizados. Na entrevista concedida ao Correio da Cidadania, Maya faz uma análise crítica do processo iniciado por Hugo Chávez. Ao final, constatamos em mais este país o mesmo fim de ciclo calcado na exportação de commodities.

"É aquilo que se chama mundialmente de maldição dos recursos naturais. Acontece na Venezuela, e em países muito ricos em gás, ouro, diamantes, enfim, vive-se de um fator externo, exporta-se muito, mas não se criam as condições de superar a dependência de tal produto. São poucos países petroleiros com boas instituições, capazes de frear e economizar na hora da bonança para ter saídas em momentos de crise".

Ao comentar o contexto venezuelano, Margarita não faz cerimônia e classifica o governo de Nicolás Maduro como ditadura, não sem antes elencar uma série de acontecimentos recentes que alteraram a legalidade institucional do país e garantiram blindagem a um governo que tem se apoiado na militarização da política nacional. É necessário acrescentar que, enquanto finalizávamos este texto, chegaram ao Brasil os jornalistas da TV Record Leandro Stoliar e Gilson de Oliveira. Eles passaram dois dias detidos no país onde pretendiam fazer uma matéria sobre um possível caso de suborno da Odebrecht, posto que a Operação Lava Jato já encontrou alguns desdobramentos além das fronteiras nacionais.

"Foi uma forma totalmente ilegítima de se proclamar vencedor de uma disputa política, sob o argumento de fraude, o que um ano depois ainda não se comprovou. Mas o tribunal supremo está sob controle de Maduro e ordenou a anulação dos resultados, mesmo sem jamais comprovar a fraude eleitoral. Em suma, o CNE deu a estocada final na democracia ao suspender o sufrágio universal, ao menos até agora", explicou, ao lembrar como o governo driblou a possibilidade de passar pelo referendo revocatório, dispositivo constitucional que foi motivo de orgulho para muitos entusiastas do chavismo.

No final das contas, a autora faz um juízo simples e direto. "Os governos de esquerda que começaram o século cercados de esperanças para os povos terminaram, ao menos alguns, em profundo desencanto. Independentemente de serem de esquerda ou não, reproduziram velhos vícios da política. No caso venezuelano, corrupção, autoritarismo e clientelismo são visíveis e isso é uma vergonha para a esquerda".

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Que avaliação faz do governo Maduro e da grave crise econômica que marca o cenário venezuelano já há alguns anos?

Margarita López Maya: A crise venezuelana é, possivelmente, a mais extensa e profunda de sua história contemporânea, e também enquanto país petroleiro. É uma crise estrutural, econômica, social, política, moral. É extensa e abarca todo o território. Agora, segundo as últimas estatísticas de pesquisas acadêmicas, como fizeram as Universidades Católica, Central e Simon Bolívar, entre outras, mais de 80% dos venezuelanos estão pobres, contam com uma renda que não dá conta das necessidades básicas e sofreram perdas abruptas.

As causas da crise têm a ver com o modelo econômico rentista-petroleiro, que vem falhando desde os anos 80 do século passado. O chavismo não o solucionou, mesmo porque foi eleito em meio a uma crise parecida a essa, com indicadores galopantes de inflação, que na época era terrível, mas agora está até pior. A inflação, o retrocesso do PIB, empobrecimento e violência também ocorreram nos anos 70, 80, 90, pois esse modelo econômico falha há décadas.

O chavismo chegou ao poder em 1998 com a proposta de superar a crise de então. Não apenas não a superou, como a escondeu. E mesmo antes da queda dos preços do petróleo já mostrava falhas. Depois da queda do preço do barril, a crise atingiu níveis incomensuráveis, muito pior do que a do final do século passado. E o modelo chamado de socialista não resolveu, até porque nada mais é do que a exacerbação desse modelo rentista, através de confiscos, nacionalizações e regulações sobre o mercado que não permitem organizar a produção. Não se produz nada, o país hoje precisa importar açúcar, café, e no momento faltam divisas para comprar tais produtos básicos.

A responsabilidade não é toda do chavismo, mas esse processo político tinha o objetivo de solucionar tais limitações estruturais. No entanto, acabou agravando-o, em especial após a queda do petróleo no mercado, há mais de dois anos em declínio, dado que o barril caiu de um ápice de 110, 120 dólares para 30, 40 dólares.

Correio da Cidadania: E por que nunca se conseguiu superar esse modelo primário-exportador na Venezuela, em favor da dinamização da produção e cadeias econômicas?

Margarita López Maya: Há uma incapacidade da sociedade, em especial das elites, de fazer uma guinada de modelo. Por exemplo, antes nos abastecíamos com nosso próprio café e açúcar, mas agora vivemos de importá-los, como disse antes. É estrutural, a responsabilidade não é exclusiva do chavismo, mas a dependência petrolífera se agravou nos últimos anos.

Com a queda dos preços, fica tudo insustentável. Faltou consciência dos dirigentes nacionais. Desde os anos 70, atribui-se as crises à corrução das elites, que são insensíveis, não produzem soluções, o que é certo, já que um Petroestado tende a ser ineficiente e corrupto. Mas, quando os preços aumentam, todos esquecem do problema. É aquilo que se chama mundialmente de maldição dos recursos naturais.

Acontece na Venezuela, e em países muito ricos em gás, ouro, diamantes, enfim, vive-se de um fator externo, exporta-se muito, mas não se criam as condições de superar a dependência de tal produto. São poucos países petroleiros com boas instituições, capazes de frear e economizar na hora da bonança para ter saídas em momentos de crise. A Noruega é um bom exemplo, mas não há muitos mais que sirvam de exemplo. O mais comum é caírem na situação venezuelana, a exemplo de Nigéria e Angola.

Neste caso, a elite do chavismo merece ser bastante culpabilizada. Apresentou-se com uma vocação muito totalitária e messiânica, a dizer que o passado não era produto de problemas estruturais e econômicos, mas apenas de uma elite econômica. Um discurso de bem contra o mal, e "como nós somos os bons, vai dar tudo certo".

Esse discurso se ata sozinho e não busca resolver os problemas sociais. Se há prosperidade, distribui-se a renda. Mas nunca se tentou resolver os grandes dilemas econômicos.

Correio da Cidadania: Mais do que o chavismo, como avalia o atual o momento do chamado bolivarianismo, linha política que marca o governo venezuelano e mais alguns outros países latinos?

Margarita López Maya: A situação é muito grave, ao menos no caso venezuelano, inclusive pelo fracasso de um projeto político que se acreditou exportável. Sob influência de Chávez e a prosperidade petroleira, que foi histórica, a durar quase 10 anos ininterruptos, o país acreditou que poderia exportar o chamado modelo socialista. Assim, usou-se a imensa magnitude dos petrodólares para fazer uma nova diplomacia, simbolizada na Alba, entre outros exemplos, como a Telesur.

Mas isso tudo está em declínio. Além do mais, falando mais da política, acompanhou-se a crise petroleira, dado que emularam tudo aquilo que diziam dos inimigos: autoritarismo, clientelismo, corrupção...

O projeto inicial de Chávez foi vendido como uma forma de aprofundamento da democracia. E de fato a Constituição de 1999 é muito ampla em termos de direitos humanos, civis, políticos, culturais e econômicos para os venezuelanos. Era uma constituição que consagrava também o princípio da descentralização, dado que o Estado era muito centralizado.

Eram dois princípios que deveriam regular a vida pública: a descentralização do Estado e o aumento dos mecanismos participativos. Eram as duas grandes novidades que vinham fortalecer a justiça e a democracia na Venezuela. No entanto, um pouco depois da greve petroleira, Chávez fez aquilo que se classificou como radicalização do projeto, que mudou para o chamado "Socialismo do Século 21".

Esse projeto foi apresentado à sociedade ao lado de uma reforma constitucional e derrotado em referendo. O voto popular não autorizou o projeto, mas havia o convencimento das virtudes messiânicas e capacidade de liderança que avalizariam uma imposição, o que de fato aconteceu. Para isso, contribuiu a força do modelo presidencialista do país, o controle sobre o Tribunal Supremo de Justiça e outros poderes públicos, como a Assembleia Nacional, de modo que se impôs o projeto por meio de leis e regulações.

Definitivamente, é um projeto de tipo autoritário e "recentralizador", que descaracteriza completamente a autonomia e independência dos poderes públicos e os submete à hegemonia do poder Executivo. Quis-se emular o modelo cubano, inclusive em termos de existir um "presidente-comandante". É uma réplica tropical do modelo soviético e nada tem a ver com a proposta de democracia participativa da Constituição dos anos 90.

Assim, transitamos para um momento de maior ênfase autoritária, sob o presidente Maduro, dado que é um modelo militarista também. Com a morte de Chávez em 2013, ficou-se sem a figura carismática, o que obrigou Maduro a buscar rapidamente uma base política. Havia a opção de se abrir, dialogar e buscar uma saída democrática, mas ele preferiu se encerrar nos círculos militares. Maduro aprofundou o caráter militar do país, numa aliança chamada cívico-militar, mas a meu ver cínico-militar.

Considero praticamente uma ditadura, porque 2016 viu uma rápida escalada de concentração de poder na mão do executivo nacional, isto é, na presidência, e uma castração da Assembleia Nacional, que foi eleita em dezembro de 2015, com vitória cômoda da oposição, galvanizada na MUD, um conjunto de quase 20 partidos políticos. Ao agir dessa maneira, atropelaram a maioria da assembleia, entraram com recurso na justiça e o governo decidiu anular as eleições, calando e reduzindo a oposição, inclusive se recusando ao diálogo.

Foi uma forma totalmente ilegítima de se proclamar vencedor de uma disputa política, sob o argumento de fraude, o que um ano depois ainda não se comprovou. Mas o tribunal supremo está sob controle de Maduro e ordenou a anulação dos resultados, mesmo sem jamais comprovar a fraude eleitoral.

A segunda medida grave foi a declaração de Estado de Exceção em maio, ao se declarar que o país estava em estado de guerra com o imperialismo internacional, representado na Colômbia pela figura de Uribe, ex-presidente do país vizinho, numa época em que algumas tensões eclodiam na fronteira entre ambos. A partir daí, o tribunal supremo passou a rejeitar todas as leis elaboradas pela assembleia e impedi-la de exercer seus atributos, como, por exemplo, exigir satisfações do executivo sobre o andamento da crise nacional. Assim, o governo não era obrigado a ir à Câmara explicar suas políticas. Enfim, tudo fez água. Cada vez que a Assembleia fazia um movimento, o tribunal dava uma resposta para interditá-la. Isso é ditadura, por mais que se aleguem as razões do Estado de Exceção.

Mais grave ainda é que o orçamento nacional de 2017, também tarefa da assembleia, não pôde ser discutido e aprovado, pois o presidente se negou a levá-lo ao parlamento e decidiu usar um caminho do chamado "parlamento do povo", adereço de seu partido que não tem nenhum poder deliberativo. Uma coisa totalmente ilegal. Mais que isso, se nega a reconhecer uma realidade política diferente, com pluralismo, que permita a negociação entre os diversos blocos políticos a respeito da gravíssima situação econômica e social que vivemos.

Começou, então, um processo de coleta de assinaturas da oposição, a fim de promover o referendo revocatório, previsto na Constituição, para solicitar aos cidadãos a consulta a respeito da continuidade ou não de Maduro na presidência. No entanto, o CNE (Conselho Nacional Eleitoral), outro poder autônomo e independente, mas que no momento passa pela mesma situação do supremo tribunal, decidiu anular o processo, adiando e adiando, até que finalmente o suspendeu, em 20 de outubro. O argumento foi produzido em tribunais penais, que são menores na hierarquia política, e em termos de poder público não possuem nenhuma ingerência em processos eleitorais. Porém, tais tribunais, de cinco estados - quatro dos quais governados por militares e outro por um membro da cúpula governista - decidiram sentenciar que havia fraude em 1% das assinaturas para o referendo.

Depois, o CNE havia recolhido novamente o montante das assinaturas necessárias, mas novamente se bloqueou o processo. Pra resumir, o CNE comunicou ao público que o referendo estava suspenso até novo aviso, sendo que neste ano de 2017 há eleições municipais, de modo que se adiaria o referendo para depois.

Em suma, o CNE deu a estocada final na democracia ao suspender o sufrágio universal, ao menos até agora. O conceito mais claro do momento é que há uma ditadura disposta a concentrar todo o poder, passar em cima das leis e constituição e suspender o direito ao voto.

Correio da Cidadania: É possível prever uma vitória dos grupos opositores identificados com a direita política no país, assim como houve nos EUA e Inglaterra, além de vizinhos continentais como a Argentina? Trata-se de uma ameaça aos povos desses países ou antes seria preciso uma autocrítica rigorosa dos ditos "governos progressistas"?

Margarita López Maya: Os governos de esquerda que começaram o século cercados de esperanças para os povos terminaram, ao menos alguns, em profundo desencanto. Independentemente de serem de esquerda ou não, reproduziram velhos vícios da política. No caso venezuelano, corrupção, autoritarismo e clientelismo são visíveis e isso é uma vergonha para a esquerda.

Dois sobrinhos do presidente Maduro foram declarados culpados por tráfico de 800 quilos de cocaína. Há muitas dúvidas sobre possíveis ligações com o narcotráfico nas veias do governo venezuelano. É um governo despótico, que favorece vários achegados, tanto é que 80% do país quer mudança política e a volta da democracia, em termos constitucionais.

Custa-me muito viver em torno de rótulos de esquerda ou direita, se a ditadura é de direita ou de esquerda tanto faz. A maioria da MUD está filiada a associações socialdemocratas de abrangência internacional, como é o caso de três dos quatro partidos principais desse espectro - Primer Justicia, Ación Democratica e Luta Popular. Aonde isso é direita pura? Haja preconceito na cabeça. Pra mim, um regime como o de Maduro é muito mais de direita, muito mais reacionário do que vários atores da oposição. Esses conceitos estáticos não ajudam a entender o que acontece em vários países, em particular a Venezuela, e a complexidade latino-americana.

Correio da Cidadania: Como relaciona esse cenário venezuelano com o Brasil, a queda de Dilma e subida de Michel Temer à presidência?

Margarita López Maya: Neste caso, falando mais diretamente dos governos de esquerda, penso que são diferentes entre eles. A problemática que leva à queda de Dilma não é a mesma de outros países. Creio que não houve ruptura institucional da democracia brasileira no mesmo nível que houve na Venezuela. A dinâmica foi diferente, não houve uma radicalidade extrema, autoritária, cenas de violência, como também houve na Nicarágua. No Equador não há os mesmos traços totalitários da Venezuela. De toda forma, fizeram importantes alianças e ficaram impregnados e desprestigiados pelo que fizeram alguns de seus colegas.

Correio da Cidadania: Como fica o cenário sul-americano e também continental em seus mecanismos supranacionais? Há um papel importante para órgãos como a Unasul ou a OEA?

Margarita López Maya: Não sou especialista em Relações Internacionais, mas creio que depois dessa mudança tão dramática de alguns governos e suas respectivas orientações políticas, ao lado da vitória de Trump, há uma reacomodação muito importante de forças. Eu acho bom que o Mercosul tenha suspendido a Venezuela por não cumprir alguns requisitos. Há uma série de postulados da carta democrática da OEA que não se cumpre no país, por exemplo. Apesar de algumas declarações do secretário geral, os governos em geral fizeram vista grossa, permitindo a Maduro aprofundar seu processo de abusos ditatoriais e militares.

Assim, vemos uma reorganização, o que no final das contas enseja um balanço das experiências vividas. E algumas dessas experiências morrerão, mesmo porque muitos casos se deram baseados nos preços das matérias primas para exportação, contexto que deixou de existir. Por isso obriga-se um rearranjo, com mais pragmatismo e menos capa ideológica. Tomara que lá na frente as coisas se acertem.

Sinto pesar de ver que desperdiçamos a chance de avançar mais, caso os governos tivessem sido mais responsáveis, com maior vocação democrática de seguir os interesses de seus povos. O que vimos no fim das contas é que governos de esquerda podem ser tão ruins quanto os de direita.

Conheça um pouco da biografia de Margarita Lopez Maya.
https://margaritalopezmaya.com/

[Fonte: Por Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista, Correio da Cidadania, São Paulo, 14fev17]

Tienda Donaciones Radio Nizkor

DD.HH. en Brasil
small logoThis document has been published on 20Feb17 by the Equipo Nizkor and Derechos Human Rights. In accordance with Title 17 U.S.C. Section 107, this material is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes.