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26Out18


“Estejam preparados para viver com as consequências dessa escolha; se o pior acontecer, vocês não vão poder dizer que não sabiam”.


Rodrigo Nunes atualmente é professor visitante em uma universidade nos Estados Unidos. À distância, revela como vê o processo político em curso no Brasil: “Um desastre em câmera lenta”. Avalia que, desde quando foram definidas as candidaturas, estava claro que existia a possibilidade de vitória da extrema direita: “Os sinais estavam todos aí, e a cada nova rodada dava para ver a probabilidade crescer”.

Para compreender a situação atual, Nunes afirma que “é tremenda” a responsabilidade da direita mais moderada e de setores como a mídia e o Judiciário. A origem mais recente do bolsonarismo começa no primeiro governo Lula. “No auge do pacto lulista, quando o boom das commodities serviu para criar uma situação em que mais ricos e mais pobres ganhavam, a oposição não tinha como dizer que as coisas iam mal; todo mundo estava vivendo melhor que no governo FHC.” Naquele momento, restou à oposição uma única linha de ataque: “requentar as paranoias anticomunistas da Guerra Fria ou explorar pânicos morais envolvendo pautas como aborto e diversidade sexual”, diz em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ao tentar explicar o sucesso eleitoral de um candidato que se notabilizou por um discurso de ódio, preconceito e declarações violentas e que enaltece a ditadura e a tortura, Nunes salienta: “Não vamos esquecer que este discurso vem sendo gradualmente normalizado faz tempo, ou por não ser punido legalmente, ou por ser minimizado como ‘polêmico’ quando na verdade é, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, criminoso”.

Ao analisar a comunicação cultivada pelo candidato à presidência Jair Bolsonaro, à frente nas pesquisas eleitorais, observa que ela é característica da extrema direita e consiste em desmentir-se constantemente: “Você afirma um absurdo, nega, diz que foi mal interpretado, depois faz tudo de novo”. Com essa tática, consegue “mandar mensagens para os elementos mais radicalizados da base, bem como para a elite econômica, ao mesmo tempo em que alimenta uma confusão sobre as verdadeiras ideias ou objetivos do líder”.

O entendimento da situação atual passa por lembrar não apenas a não condenação da tortura e dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura de 1964, mas também pela memória de “dois crimes contra a humanidade que estão na fundação do Brasil: o genocídio indígena e a escravidão”. Conforme o professor, essa lembrança não consiste em um gesto meramente retórico, porque “quando você vê que uma parte da população se ressente profundamente de qualquer ganho de direitos por outra parte da população, percebe que isso não é trivial”. Para Nunes, “uma das coisas mais poderosas que se pode dizer agora àqueles de quem somos próximos e que pretendem votar em Bolsonaro: estejam preparados para viver com as consequências dessa escolha; se o pior acontecer, vocês não vão poder dizer que não sabiam”.

Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Atualmente é professor visitante na Brown University, Estados Unidos, período em que trabalha no seu novo livro, Beyond the Horizontal. Rethinking the Question of Organisation, que será publicado em 2019 pela editora inglesa Verso.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é sua percepção de quem está acompanhando as eleições de longe? Como está vendo o processo?

Rodrigo Nunes – Como um desastre em câmera lenta. Uma das características da tragédia é que o destino dos personagens se desenrola inexoravelmente a partir de atos que fazem sentido individualmente, mas cuja concatenação conduz ao pior resultado possível – e esta lógica, visível para o espectador, é invisível aos personagens, que vão se enredando cada vez mais nos efeitos de suas escolhas. Não vou dizer que previ que estaríamos tão próximos de uma vitória da extrema direita, porque “previsão” em política é só um cálculo de probabilidades; mas desde quando foram definidas as candidaturas, estava claro que a possibilidade existia. Porque estas estavam destinadas a ser eleições marcadas por um forte sentimento antissistêmico; porque não existia uma candidatura forte da direita mais moderada; porque o PT tinha votos suficientes para passar no primeiro turno, mas uma rejeição que dificultava a vitória no segundo; porque o establishment político e econômico já começava a sinalizar acomodação com a hipótese Bolsonaro. Os sinais estavam todos aí, e a cada nova rodada dava para ver a probabilidade crescer.

E tudo isso resulta de decisões que os diferentes agentes tomaram porque eram vantajosas para eles, logo “racionais”. Assim, o PSDB decidiu em 2016 não correr o risco de repetir 2005 – quando achava que bastava deixar o Mensalão “sangrar” Lula, mas este se recuperou – e embarcou na aventura do impeachment. Aí o desastre do governo Temer enterrou o PSDB e ajudou o PT a recuperar alguma popularidade, pondo Lula na dianteira da corrida presidencial. O Judiciário então acelerou o julgamento de Lula para tirá-lo do páreo. O cálculo era que Bolsonaro tinha um teto baixo e logo seria ultrapassado por uma candidatura da direita mais moderada. Mas agora Lula tinha votos suficientes para passar do primeiro turno e, sem candidato próprio, o PT corria o risco de ser dizimado no Congresso. Então, pensando na sobrevivência do partido, Lula escolheu a candidatura própria e manobrou para que o PSB não apoiasse Ciro Gomes. O PT ofereceu a vice-presidência para Ciro, mas este via que sua grande oportunidade era como terceira via, porque as duas candidaturas mais fortes também tinham alta rejeição. Este ativo, ele calculou, seria neutralizado se ele integrasse a chapa do PT.

Então o PT tinha votos para chegar no segundo turno, mas uma rejeição proibitiva quando chegasse lá; e Ciro tinha dificuldade de passar para o segundo turno, mas, chegando lá, tinha boas chances, pois tinha menor rejeição. Os dois avaliaram que dava para tentar ganhar sem o apoio um do outro e pagaram para ver. E todo o tempo o cálculo deles era o mesmo de todos os analistas e toda a classe política: que Bolsonaro murcharia, que a polarização seria com o PSDB. Mas como o PSDB foi quem mais encolheu nestas eleições, logo ficou claro que, se a aposta deles desse errado, o custo não era uma vitória de Alckmin, mas entregar a presidência a Bolsonaro.

Todo mundo sabia dos riscos e todo mundo agiu racionalmente, buscando maximizar seus interesses a partir das informações que tinha. O resultado está aí.

IHU On-Line – Faltou grandeza a Lula e a Ciro?

Rodrigo Nunes – Que discutamos estas coisas em termos de qualidades pessoais – se este tem ou não tem grandeza, se aquele tem ou não tem direito de querer ser candidato – já dá a dimensão do problema. Como decisões tão importantes, com efeitos nas vidas de todos, ficam na mão de indivíduos? Como que nós, que constituímos a base eleitoral da esquerda, não temos nenhuma interferência nisso? Isso diz muito sobre as estruturas partidárias (ou falta delas), sobre a necessidade de reorganização da esquerda, mas também sobre nós. Iniciativas como o Quero Prévias até tentaram constituir um contraponto às direções partidárias para forçar o debate, mas não funcionou – seja pela maneira como isso foi feito, seja porque toda a incerteza dos últimos anos tornou as pessoas mais, e não menos, dispostas a passar cheques em branco para as lideranças.

IHU On-Line – Muitas análises têm responsabilizado a esquerda pela situação, mas qual o papel de outros segmentos políticos?

Rodrigo Nunes – A responsabilidade da direita mais moderada e de setores como a mídia e o Judiciário no que está acontecendo é tremenda.

Se quisermos buscar as origens mais recentes do bolsonarismo, veremos que suas sementes começam a ser plantadas já no primeiro governo Lula. No auge do pacto lulista, quando o boom das commodities serviu para criar uma situação em que mais ricos e mais pobres ganhavam, a oposição não tinha como dizer que as coisas iam mal; todo mundo estava vivendo melhor que no governo FHC. A única linha de ataque possível para a oposição naquele momento era requentar as paranoias anticomunistas da Guerra Fria ou explorar pânicos morais envolvendo pautas como aborto e diversidade sexual.

Órgãos de imprensa semanalmente levantavam grandes acusações sem nenhuma prova: Cuba teria financiado a campanha de Lula, os ministros do STF estariam sendo grampeados... E os líderes da oposição “responsável” emprestavam sua credibilidade a estas histórias, aparecendo na imprensa para comentar que, se verdadeiras, as acusações eram muito graves etc. Organizações como o Instituto Millenium injetaram fortunas em discursos que misturavam pregação ultraliberal e macartismo delirante; houve um boom editorial deste tipo de literatura. Paralelo a isso, a direita mais moderada também incentivou pânicos morais como o famigerado “kit gay” e foi trazendo o discurso religioso conservador, que já crescia com os representantes do eleitorado evangélico, para o centro do debate. Tudo isto foi abrindo o mainstream cada vez mais a um conservadorismo moral militante, a discursos de extrema direita e à lógica das teorias da conspiração.

Invariavelmente, a escolha do PT foi buscar a conciliação. Assim, ao invés de tentar regular o setor inteiramente desregulado que é a mídia, ele foi fazendo concessões; da mesma forma, buscou alianças com a bancada do boi, da bala e da Bíblia, abrindo mão de pautas e aumentando a penetração da agenda conservadora. Isso não serviu para nada quando estes setores embarcaram entusiasticamente no impeachment.

Além disso, fomentou-se um ativismo jurídico que, sob a cobertura de dar respostas rápidas à opinião pública, exacerbou a insegurança jurídica e interferiu diretamente no processo político. Quando um juiz de primeira instância grava uma conversa da presidente da República e a torna pública sem medo de sofrer as devidas punições legais, é porque ele sabe que está blindado.

Como coroação dessa irresponsabilidade, veio o impeachment. E durante todo o tempo em que se semeava confusão, o cálculo era claramente que, ao final de todas as manobras, as eleições cairiam no colo do PSDB, e a elite política poderia se recompor. A lógica era incitar forças perigosas a fim de explorá-las em benefício próprio. No fim, essas forças engoliram a direita mais moderada, e o establishment agora faz que não é com ele: denuncia o caos que ajudou a criar, estabelece uma falsa equivalência entre Haddad e Bolsonaro, e se prepara para negociar um lugar à mesa do provável novo governo.

IHU On-Line – O senhor escreveu que as chicanas que caracterizaram o processo de impeachment deram um reforço de legitimidade institucional a um espírito de vale-tudo. Isso é suficiente para explicar o clima que se instaurou no país?

Rodrigo Nunes – Não só o impeachment, mas uma série de intervenções que veio antes e depois. Por seu caráter errático e frequentemente parcial – ora céleres e rigorosas, como no julgamento de Lula, ora lentas ou “matadas no peito”, como no tratamento dispensado a Aécio Neves ou na atuação pífia do Tribunal Superior Eleitoral - TSE –, elas contribuíram para desmoralizar ainda mais o Judiciário e as instituições como um todo. Nossas instituições sempre foram madrastas com a maioria da população; mas quando o vale-tudo é liberado mesmo no topo da pirâmide do sistema político, isto gera um efeito em cadeia cujo resultado é a generalização de um misto de anomia e voluntarismo.

Anomia, porque a grande função das instituições, que é garantir a previsibilidade dos processos políticos e sociais, é abandonada; tudo se torna imprevisível porque tudo é reduzido às relações circunstanciais de força, à lei do mais forte. E voluntarismo porque, num quadro assim, cresce a demanda justamente pela força – por indivíduos que saltem por sobre a lei e imponham um resultado unilateralmente, sem qualquer mediação.

Historicamente, anomia e voluntarismo não só são a combinação da qual nasce o fascismo, mas também aquela que o sustenta, que ele precisa fomentar para existir. É o coquetel do qual se alimenta uma liderança autoritária como Bolsonaro. E daí para que a força deixe de ser exercida por dentro das instituições e passe também às ruas, virando violência física, é só um passo.

Para além da instabilidade institucional, o impeachment foi profundamente deseducativo do ponto de vista da prática democrática. Ao fazer uma gambiarra para premiar a demanda por um “terceiro turno” das eleições, o impeachment ensinou, para uma parcela da população que pouco tinha participado da política até ali, que a democracia não é um espaço de negociação das diferenças, mas uma arena em que é legítimo quem se julga maioria exigir a gratificação imediata do próprio desejo, sem diálogo, procedimentos ou instituições. Disso resulta, por um lado, o desejo de uma mão forte, de alguém capaz de impor sua vontade unilateralmente; e, por outro, uma lógica de não negociação com a diferença cujo limite é, mesmo se nem todos se dão conta disso, a eliminação física do outro: “ou você deixa de ser diferente, ou você deixa de ser”. É para este horizonte que falas sobre “acabar com o ativismo” e “eliminar os vermelhos”, para não falar da violência contra jornalistas e população LGBTQ, apontam.

Esta demanda por gratificação imediata está clara em dois elementos do discurso do bolsonarismo. Primeiro, nessa frase recorrente em todos estes episódios de violência que têm acontecido, “essa farra vai acabar”. É como se dissessem: “esse tempo em que era preciso negociar meus desejos, em que eu precisava abrir mão do meu gozo, está chegando ao fim”. Segundo, na concepção mágica da política que se expressa na frase “se ele não der certo, a gente tira e bota outro no lugar”.

IHU On-Line – O que explica o sucesso eleitoral de um candidato que se notabilizou por um discurso de ódio, preconceito e declarações violentas contra pessoas LGBTs, mulheres, negros e índios, que enaltece a ditadura e a tortura? Como milhões de pessoas conseguem votar em alguém que atenta contra a própria existência de pessoas?

Rodrigo Nunes – Não vamos esquecer que este discurso vem sendo gradualmente normalizado faz tempo, ou por não ser punido legalmente, ou por ser minimizado como “polêmico” quando na verdade é, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, criminoso. Não vamos esquecer, também, o quanto elementos deste discurso foram nutridos pelo mainstream ao longo desse tempo; há alguns anos, por exemplo, a moda eram os humoristas “politicamente incorretos”, celebrados como tribunos da liberdade de expressão. Não vamos esquecer, ainda, que os próprios governos petistas, especialmente durante a gestão de Dilma, contribuíram para a minimização das questões ambiental e indígena e se curvaram para o conservadorismo. Por último, não vamos esquecer que as raízes de vários elementos deste discurso estão no desconforto real sentido por diferentes setores diante de transformações ocorridas na última década: o crescimento da visibilidade e das demandas de atores historicamente excluídos. Quando ocorreu o impeachment, eu já dizia que o verdadeiro golpe era contra estas tendências.

Bolsonaro cultiva um tipo de comunicação característico da extrema direita, que consiste em desmentir-se constantemente: você afirma um absurdo, nega, diz que foi mal interpretado, depois faz tudo de novo. Trump faz muito isso. Esta tática permite mandar mensagens para os elementos mais radicalizados da base, bem como para a elite econômica, ao mesmo tempo em que alimenta uma confusão sobre as verdadeiras ideias ou objetivos do líder. Assim, ele pode ser todas as coisas para todas as pessoas: quem quer fascismo ouve fascismo, quem não quer ouve só um arroubo espontâneo, quem deseja uma política ouve essa política, quem deseja outra ouve outra.

Esta tática dificulta a compreensão do próprio eleitorado bolsonarista. Até que ponto quem vota nele o faz porque se sente inseguro, está farto da política convencional, deseja mudança e realmente não acredita que ele represente maiores riscos, a não ser para os corruptos e os criminosos? Ou acredita que ele representa riscos para a democracia e as instituições, mas que estes são pequenos? Ou acredita que ele representa riscos razoáveis, mas está disposto a corrê-los, porque avalia que os riscos são só para os outros? Ou efetivamente deseja que ele seja realmente tudo aquilo que fala? Não há uma fronteira absolutamente clara entre estes grupos, mas é evidente que seu eleitorado se compõe de tudo isso. Há diferentes tipos de eleitores de Bolsonaro, que têm motivações diferentes, e é preciso relacionar-se diferentemente com cada um deles.

IHU On-Line – É possível falar em fascismo?

Rodrigo Nunes – Há basicamente duas maneiras de pensar o fascismo. Uma é a da história e da ciência política; ela consiste em montar uma lista de características que historicamente caracterizariam o fascismo e comparar os fenômenos sob investigação com ela. Um dos problemas dessa abordagem é que não há consenso sobre quais elementos devem pertencer à lista.

Outra abordagem vê o fascismo como uma questão de psicologia social; ele é da ordem do desejo. Isso implica que, propriamente falando, não há fascistas, mas desejos fascistas, e indivíduos que podem ser atravessados por esses desejos em maior ou menor grau, de maneira mais ou menos consciente.

Importam, aí, quatro características gerais dos desejos.

Primeiro, eles são diretamente sociais: eles atravessam as pessoas ao invés de estar dentro delas.

Segundo, eles são, por isso mesmo, flutuantes e variáveis. A pesquisa comparando o comício de Bolsonaro no último domingo com a manifestação pró-Lava Jato de 2017 mostra isso: são provavelmente as mesmas pessoas, mas elas agora se dizem “muito conservadoras”. Quando eu criticava a ideia de “ascensão conservadora” três anos atrás, era para dizer que se negamos a legitimidade dos sentimentos antissistêmicos, se reduzimos todos que discordam de nós a condição de fascistas, estamos perdendo diálogo com as pessoas e deixando espaços para que estes sentimentos sejam disputados por práticas e discursos que podem, sim, tornar-se fascistas. Daí também a pergunta, após a eleição de Trump, sobre como lidar com a entrada de um discurso obsceno na política.

Terceiro, também por isso, desejos podem entrar em reverberação ou feedback positivo: quando aparece uma liderança que os galvaniza, quando eles ganham visibilidade nos meios de comunicação, quando as pessoas os expressam publicamente, eles se reforçam e expandem.

Quarto, desejos são mais fortes que interesses: as pessoas são capazes de desejar coisas que vão contra seus próprios interesses. Como dizia Spinoza, nós não desejamos algo porque é bom, nós achamos que algo é bom porque o desejamos.

E o que caracteriza este desejo? Um investimento no líder, na força e na vontade como saídas para uma situação percebida como impasse e anomia. O incômodo diante da diferença, que eu culpo pelo impasse e pela anomia, que me impedem de ser feliz. E a condensação desse incômodo na figura de um outro que precisa ser suprimido ou eliminado para que eu possa obter minha felicidade.

É neste sentido que o fascismo é fundamentalmente antidemocrático: ele não suporta a ideia de ter de negociar, construir, mudar; ele quer eliminar o incômodo, isto é, o outro. A isso se agrega todo tipo de interesse imediato e mesquinho, de pequenos ódios e invejas cotidianos, que se tornam justificáveis na medida em que eu posso culpar o outro por eles. Os dois primeiros filmes de Pablo Larraín sobre a ditadura no Chile, Tony Manero e Post Mortem, são retratos perfeitos disso.

Há desejos fascistas à solta? É claro que há, e os episódios de violência das últimas semanas mostram que há indivíduos inteiramente atravessados por eles. Lidar com isso é como um trabalho de epidemiologia: é preciso tentar conter esses desejos e essas pessoas, imunizar os demais contra eles, mobilizar os desejos e afetos não fascistas que movem as pessoas contra eles. Porque, ainda segundo Spinoza, afetos e desejos só podem ser neutralizados por afetos e desejos na direção contrária.

IHU On-Line – A não condenação da tortura e dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura de 1964 é determinante para se entender esta situação?

Rodrigo Nunes – Antes da memória da ditadura, temos a memória de dois crimes contra a humanidade que estão na fundação do Brasil: o genocídio indígena e a escravidão. Parece um gesto meramente retórico lembrar disso, mas quando você vê que uma parte da população se ressente profundamente de qualquer ganho de direitos por outra parte da população, percebe que isso não é trivial. Uma parte do Brasil dá por ganho um direito sobre o tempo e os corpos de outras pessoas que não é absolutamente normal em lugares como a Europa; ela acha que são os pobres, negros e indígenas que têm uma dívida com ela e não o contrário. No fim, a elite brasileira é acostumada a um grau de privilégios que só é compatível com uma república de bananas – daí, justamente, que nossa história política seja atravessada por golpes e viradas de mesa que vêm sempre de cima para baixo, nunca de baixo para cima.

No Canadá é costume, antes de eventos culturais ou acadêmicos, anunciar: “estamos no território de tal tribo”. Parece uma mera formalidade, e em certa medida é; mas um amigo canadense me disse: “é porque estamos há décadas fazendo esse tipo de coisa que algo como Belo Monte não seria possível aqui”.

O direito à memória é também o direito de não deixar esquecer, e isso se aplica não só a quem cometeu os crimes, mas a quem ficou indiferente enquanto crimes eram cometidos. Quando os Hijos na Argentina fazem um protesto em frente ao edifício de um torturador da ditadura, eles não estão apenas dizendo para a vizinhança: “aqui mora um torturador”. Eles também estão dizendo: “muitos de vocês provavelmente sabiam ou suspeitavam que o vizinho de vocês era um torturador e seguiram cumprimentando-o no elevador durante anos”.

Esta produção pública de vergonha tem um efeito potente. Porque o fascismo é um fenômeno de massa e, no meio da massa, as relações entre causa e efeito se tornam mais tênues; ninguém se sente mais tão responsável. Uma questão central da psicologia de massas sempre foi: como pode que pessoas absolutamente comuns no meio de grandes grupos em ebulição façam coisas absolutamente terríveis?

Mas estatisticamente o mais comum não é que pessoas normais façam coisas horríveis, mas que pessoas normais não façam nada horrível, mas também não façam nada enquanto coisas horríveis acontecem a seu redor. Ao estabelecer uma relação, ainda que retrospectiva, entre causa e efeito, e cobrir esta relação com o afeto negativo da vergonha, o exercício do direito de não deixar esquecer deixa uma marca para o futuro: “pense bem nas consequências de suas ações ou omissões hoje, porque amanhã você poderá ser cobrado publicamente delas”.

Esta, me parece, é uma das coisas mais poderosas que se pode dizer agora àqueles de quem somos próximos e que pretendem votar em Bolsonaro: estejam preparados para viver com as consequências dessa escolha; se o pior acontecer, vocês não vão poder dizer que não sabiam.

IHU On-Line – Como entender o fenômeno das “fake news”? As plataformas digitais constituíram uma realidade paralela, com características próprias?

Rodrigo Nunes – Cada um de nós acredita em mais coisas do que pode comprovar diretamente; eu nunca medi a distância daqui à Lua, mas acredito que temos conhecimento verdadeiro dela. Por quê? Porque é a crença mais razoável: há várias evidências indiretas que corroboram essa ideia.

O fenômeno das “fake news” não é uma ou outra ideia falsa, mas a erosão do ambiente de formação de crenças; ele funciona por saturação. Se você satura o entorno das pessoas com informações falsas que se comprovam mutuamente, ou com informações falsas que desacreditam as autoridades nas quais elas normalmente acreditariam, você as desorienta, as faz confiar em mentiras e achar que todas as vozes dizendo o contrário, mesmo as mais respeitadas, são parte de uma conspiração para esconder a verdade.

Mas é preciso lembrar: esta saturação não começou nestas eleições, e ela foi durante anos amplamente explorada pela direita mais moderada. “Especialistas” cansaram de prever cataclismas que não se realizaram; quem passou os últimos 15 anos lendo Veja já habita uma realidade paralela faz tempo. O petismo também criou um aparato de notícias duvidosas, mas este, sem ter ressonância na grande mídia, teve penetração restrita à militância.

O WhatsApp de hoje é apenas o espelho distorcido, rizomático e militante, que reflete a exploração cínica destas táticas pelo mainstream. E nem tão militante assim: como descobrimos na última semana, o alto engajamento voluntário da campanha de Bolsonaro é sustentado por uma estrutura de propaganda profissionalmente montada para este propósito.

IHU On-Line – O que esperar de um governo Bolsonaro?

Rodrigo Nunes – No fim das contas, acredito que Bolsonaro é menos um fanático que um oportunista. Como Trump, suspeito que ele deva terceirizar áreas inteiras de seu governo aos lobbies do mercado financeiro, da educação privada, das mineradoras, do agribusiness etc. Isso, obviamente, será desastroso para os pobres, para o meio ambiente, para os indígenas, para os negros, para os LGBTQ. Mas também significa que, em algum momento, ele não conseguirá mais ser todas as coisas para todo mundo: sua agenda econômica prejudicará muita gente, seu discurso anticorrupção será contradito por suas alianças no Congresso. O que acontecerá nesse momento? Ele pode compensar radicalizando o elemento punitivo e violento de sua figura, atiçando sua base contra um “inimigo interno” a ser eliminado. Os resultados podem ser terríveis, comparáveis a um Duterte, das Filipinas.

O establishment claramente já fez a aposta de que é possível controlá-lo. O caso de fraude eleitoral que explodiu na semana passada ficará cozinhando em fogo lento para chantageá-lo com o risco de anulamento da chapa. Ele aceitará a chantagem ou apostará no caos para se fortalecer? É impossível prever agora.

IHU On-Line – E de um governo Haddad?

Rodrigo Nunes – Será um governo fraco, sob constante ameaça. Só espero que a esquerda, diante disso, não repita o mesmo erro de achar que, porque o governo é fraco, é melhor não se mobilizar. Porque, se não houver esquerda na rua, a única base social mobilizada será da direita, e Haddad não terá capital nenhum para negociar. Quando 2013 abriu um flanco à esquerda, o PT se moveu ainda mais para o centro, enquanto a direita se organizava para disputar as ruas e se deslocava para a extrema direita. No fim, enquanto a direita radicalizava, o PT assumiu o papel de único que acreditava nas instituições, e ficou com o mico. Sem uma esquerda independente para cobrar uma agenda, o movimento em direção ao centro continuará – e o centro já demonstrou que não está preocupado com a democracia ou as regras do jogo.

Ganhe quem ganhar, o problema para a esquerda continuará o mesmo dos últimos anos: finalmente começar o trabalho de se reinventar.

[Fonte: Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, RS, 26Out18]

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