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27ago03
Recurso de Apelação Parcial contra a sentença 307/2003.
Excelentíssima Senhora Doutora Juíza Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal
Processo Nº 82.0024682-5
Autores: Julia Gomes Lund e Outros
RÉ: UniãoA UNIÃO, por seu representante judicial signatário, com fundamento no artigo 513 e seguintes do Código de Processo Civil, vem interpor recurso de APELAÇÃO PARCIAL contra a sentença proferida nos autos em epígrafe, o que faz nos termos e para os fins deduzidos em anexo, requerendo seja o apelo recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo (art. 520, caput, 1ª parte, CPC).
Nestes termos,
Pede deferimento.Brasília/DF, 27 de agosto de 2003.
Alvaro Augusto Ribeiro Costa
Advogado-Geral da União
Egrégio Tribunal Regional Federal da Primeira Região
Processo Nº 82.0024682-5
Autores: Julia Gomes Lund e outros
RÉ: UniãoRazões do Recurso
I. Considerações Iniciais (Um Novo Momento no País)
Impõe-se lembrar, inicialmente, que a sentença em cogitação foi proferida em momento inteiramente diverso daquele em que proposta a ação. Estava-se naquele tempo sob as restrições de um regime de exceção, o que condicionava o procedimento de seus defensores e opositores, limitando também a atuação das instituições e de seus agentes. Hoje, porém, vive o País a plenitude do Estado de Direito e do Regime Democrático, não existindo exceções à submissão de todos, do Estado e dos cidadãos, ao império da lei. Os Poderes da República exercitam suas funções em ambiente de absoluto respeito e harmonia.
As Forças Armadas, por sua vez, desempenham amplo e diversificado papel na vida nacional. Preservam a soberania nacional, controlam o espaço aéreo e as fronteiras marítimas e terrestres, desempenham significativas ações na manutenção da lei e da ordem. Constituem fator de garantia da ordem pública e prestam valioso apoio aos poderes públicos no combate à criminalidade. Seu papel integrador é crescentemente de grande amplitude.
Desenvolvem os mais diversos programas e atividades de interesse nacional - como, por exemplo, no que se refere à educação de jovens, a obras públicas, à defesa civil, à geração de conhecimento científico e tecnológico. Participam, além disso, de diversos programas de natureza social, como o Fome Zero.
Dúvida não deve haver, portanto, quanto à inequívoca observância, pelas Forças Armadas, de seu papel constitucional, bem como do respeito que devotam ao poder civil e à ordem democrática. Os desafios que enfrentam atualmente, é importante lembrar, dizem respeito às condições materiais e humanas que lhes permitam - devidamente motivadas, aparelhadas e adestradas - aperfeiçoar sua capacidade de atuação no âmbito de seu destino constitucional.
É este o ambiente em que se situam as Forças Armadas, no concerto das instituições nacionais, prestigiadas e valorizadas, permanentes e essenciais. Seus membros, tanto quanto os integrantes de todos os Poderes da República e da sociedade civil, convivem na plena harmonia dos espaços que lhes são próprios e partilham dos anseios de todos pela realização das potencialidades da Nação em ambiente de paz e segurança.
Tudo isso foi possível pela superação do regime autoritário, mediante um processo de pacificação, negociação, transigência e entendimento entre brasileiros de todos os credos e convicções políticas e ideológicas, de que são marcos a Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79) e a Constituição Cidadã de 1988.
Na mesma linha, registre-se igualmente a Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995, tudo culminando em providências diversas que deram aplicação a esses diplomas. Nesse novo contexto é que se coloca novamente a chamada "Questão do Araguaia", em parte objeto do processo e da sentença aqui referida.
Já não se põem em oposição Forças Armadas e Poder Civil. Ambos estão plenamente integrados em novo regime constitucional e nos projetos comuns de interesse da nacionalidade.
Não há mais lugar para o desconhecimento ou a sonegação dos fatos históricos; e também não há margem para o descrédito das instituições, cuja dignidade não está em jogo, sejam elas civis ou militares.
Impõe-se, assim, em clima de serenidade e equilíbrio, ao serem reconhecidos os legítimos direitos dos familiares dos mortos e desaparecidos naquele conflito - que hoje é página incontroversa da História do Brasil -, assim proceder sem reabrir feridas e recriar divisões que o processo democrático superou.
Por isso tudo e, em especial, porque se impõe o respeito à ordem jurídica, é que a presente Apelação é interposta em caráter parcial.
Sem negar genérica ou especificamente os fatos e provas em que se baseou a sentença apelada, o recurso busca garantir que sejam estabelecidas pelo egrégio Tribunal Regional Federal, em segunda instância, as pretensões dos autores em seus exatos limites, como expostas na petição inicial da ação que intentaram contra a União.
Dentro desta compreensão é que se situa o recurso ora interposto pela União Federal, como adiante enunciado.
II. Da Nulidade Parcial da Decisão, por Julgamento Ultra e Extra Petita.
II.1 Do Julgamento Ultra e Extra Petita.
A ação deve ser decidida na forma com o que foi postulado na inicial e na defesa, quando é formada a litiscontestatio. Este princípio vem do Direito Romano que o enunciava expressamente: setentia debet esse conformis libello. Assim, o limite da entrega da prestação jurisdicional invocada é o pedido. Se for deferido algo fora da litiscontestatio, indo além, haverá julgamento ultra ou extra petita, e a parte excedente será tida como nula, por força dos artigos 128, 459 e 460, todos do Código de Processo Civil.
Como se depreende da leitura da petição inicial, os autores fazem três pedidos certos e determinados que aqui destacamos do texto original (fl. 21):
"53. Pretendem os autores, por via da presente ação, seja a Ré compelida a lhes INDICAR A SEPULTURA DE SEUS PARENTES, DE MODO QUE POSSAM SER LAVRADOS OS COMPETENTES ATESTADOS DE ÓBITO [PEDIDO 1] e SEREM TRANSLADADOS SEUS CORPOS [PEDIDO 2] e FORNECIDO O RELATÓRIO OFICIAL DO
MINISTÉRIO DA GUERRA DATADO DE 5 DE JANEIRO DE 1975 [PEDIDO 3], sob pena de arcar a Ré com multa diária de CR$ 100.000,00 (cem mil cruzeiros)."
Interessante notar que na fundamentação a Exma. Juíza delimitou perfeitamente o pedido (fl. 1323), assim o resumindo:
"Os Autores, familiares de cidadãos que participaram do movimento intitulado Guerrilha do Araguaia, aniquilado pela Forças Armadas no período de abril de 19 janeiro de 1975, visam por esta ação a localização da sepultura de seus parentes, traslado dos corpos e o fornecimento de informações contidas no Relatório oficial do Ministério da Guerra datado de 5 de janeiro de 1975."
No entanto, em sua parte conclusiva, a sentença impôs obrigações que não correspondem a pretensões dos autores e, por isso, não foram objeto do pedido na ação. Com efeito, a sentença apelada não observou em parte os limites do pedido, ao determinar, como se vê às fls. 1315/1360, verbis:
"1 - a quebra de sigilo das informações militares relativas a todas as operações realizadas no combate à Guerrilha do Araguaia;
2 - à Ré que, no prazo de 120 (cento e vinte) dias, informe a este Juízo onde estão sepultados os restos mortais dos familiares dos Autores, mortos na Guerrilha do Araguaia, bem como para que proceda ao traslado das ossadas, o sepultamento destas em local a ser indicado pelos Autores, fornecendo-lhes, ainda, as informações necessárias à lavratura das certidões de óbito;
3 - à Ré que, no prazo de 120 (cento e vinte) dias, apresente a este Juízo todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à Guerrilha, incluindo-se, entre outras, aquelas relativas aos enfrentamentos armados com os guerrilheiros, à captura e detenção dos civis com vida, ao recolhimento de corpos de guerrilheiros mortos, aos procedimentos de identificação dos guerrilheiros mortos quaisquer que sejam eles, incluindo-se as averiguações dos técnicos/peritos, médicos ou não, que desses procedimentos tenham participado, as informações relativas ao destino dado a esses corpos e todas as informações relativas à transferência de civis vivos ou mortos para quaisquer áreas.
Para o integral cumprimento desta decisão DETERMINO à Ré que, sendo necessário, proceda à rigorosa investigação, no prazo de 60 (sessenta) dias, no âmbito das Forças Armadas, para construir quadro preciso e detalhamento das operações realizadas na Guerrilha do Araguaia, devendo para tanto intimar a prestar
depoimento todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado de quaisquer das operações, independente dos cargos ocupados à época, informando a este Juízo o resultado dessa investigação."
Mostra-se evidente, assim, que essa decisão extrapola os limites do pedido. Observa-se o excesso, inicialmente, em relação às determinações sob os nos 1 e 3. Como transcrito acima, os autores requereram, quanto a documentos, apenas que lhes fosse "fornecido o relatório oficial do Ministério da Guerra datado de 5 de janeiro de 1975 [pedido 3]".
Por outro lado, não consta do pedido inicial a "quebra de sigilo das informações militares relativas a todas as operações realizadas no combate à Guerrilha do Araguaia"; nem, muito menos, a exigência de "todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à Guerrilha (...)", Além disso, igualmente não pediram os autores "a rigorosa investigação", "no prazo de 60 (sessenta) dias, no âmbito das Forças Armadas, para construir quadro preciso e detalhamento das operações realizadas na Guerrilha do Araguaia (...)".
No entanto, a decisão apelada impõe a investigação, cobrando resultados incertos, em prazo exíguo, não para a localização e identificação dos corpos, mas para o "detalhamento das operações realizadas na Guerrilha do Araguaia" (sic). A extrapolação dos limites do pedido, como se vê, manifesta-se em todos os pontos relativos a tal imposição.
II.2. Contrariedade à lei e à Constituição.
Na parte em que excedeu os limites do pedido, o julgado ora apelado contrariou os artigos 128, 459 e 460 do Código de Processo Civil, cuja redação se transcreve:
Art. 128 O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
Art. 459 O juiz proferirá a sentença, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o pedido formulado pelo autor. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, o juiz decidirá em forma concisa.
Art. 460 É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.
Pela mesma razão, a sentença também feriu dispositivos da Constituição Federal. Com efeito, resultaram violadas disposições pertinentes aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, inscritos no artigo 5°, incisos LIV e LV, da Carta Magna.
Lembra Humberto Theodoro Júnior1 que "a justa composição da lide só pode ser alcançada quando prestada a tutela jurisdicional dentro das normas traçadas pelo Direito Processual Civil." E explica ainda: " A garantia do devido processo legal, porém, não se exaure na observância das formas da lei para a tramitação das causas em juízo. Compreende algumas categorias fundamentais como a garantia (...) de ampla defesa e
contraditório (CF, art. 5°, inc. LV) e, ainda a de fundamentação de todas as decisões judiciais (art. 93, inc IX)."A propósito, merece lembrança outra passagem do mesmo ilustre autor :
"O juiz mantém-se eqüidistante dos interessados e sua atividade é subordinada exclusivamente à lei, a cujo império se submete como penhor de imparcialidade na solução do conflito de interesses."
Indiscutivelmente, as convicções e as experiências de vida do Juiz influem diretamente no raciocínio formado para a construção de uma decisão.
No entanto, não há como se admitir que o Juiz amplie e fixe o objeto da lide fora e além do âmbito do conflito entre as pretensões das partes litigantes. Bem por isso, o Professor Ernane Fidélis dos Santos3, leciona:
"O juiz, porém, não está autorizado a buscar, por si mesmo, a lide ou a pretensão insatisfeita, para julgá-la ou realizá-la, pois que elas só se manifestam juridicamente, no processo. Para o Estado-Juiz só há litígio, lide, ou pretensão insatisfeita, quando
o interessado os submete ao Poder jurisdicional
Como visto, o dispositivo da sentença, na parte em que se afasta do pedido, equivale a um verdadeiro aditamento da petição inicial. Todavia, sabido é que não se admite, no ordenamento jurídico pátrio, que o Juiz, de ofício, altere os pedidos constantes da petição inicial, substituindo a oportuna iniciativa da parte autora. Se, não obstante, contraria tal limitação, incorre em ofensa aos princípios constitucionais expressos no artigo 5°, incisos LIV e LV, da Lei Maior.
Não se pode olvidar, tampouco, que o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do estado de direito, tem íntima ligação com o princípio da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação quanto o direito de defesa são manifestações deste princípio.
Neste sentido, Ada Pellegrini Grinover ensina que a tese e a antítese, no diálogo processual, são representadas exatamente pela ação e pela defesa - mais uma vez em seu sentido mais amplo - sendo esta correlata àquela, ou, antes, justaposta, como força contrastante; que as partes hão de gozar de igual idoneidade técnica e dispor de situações subjetivas análogas, de modo que a função que exercem tenha a mesma eficácia dinâmica no plano dialético. E, finalmente, que o processo jurisdicional moderno não pode abrir mão daquele tipo particular de colaboração que se realiza por intermédio do contraditório, exatamente entendido como método de busca da verdade baseado na contraposição dialética.
O contraditório representa, então, o complemento e o corretivo da ação da parte, uma vez que cada uma delas agirá de modo parcimonioso, visando seu próprio interesse.
Assim, a ação combinada dos dois serve à justa composição da lide.
A respeito, cabe também a lição de Vicente Greco Filho, assinalando que o contraditório é justamente o meio ou o instrumento técnico para a efetivação da ampla defesa. Na mesma linha, também Arruda Alvim6 assevera:
A sentença 'extra petita' viria a subtrair ao réu a legítima possibilidade de se ter defendido, pois não teria ele tido a oportunidade de manifestar-se sobre o que viria a ser decidido...
Em síntese - e como já afirmado -, o autor e o réu formulam pedidos que se constituem na contraposição, o elemento fundamental da contrariedade. É neste limite que o Juiz deve proferir a sentença: ne procedat judex ex officio.
No caso em questão, o julgamento extra e além do pedido operou nítido desequilíbrio na relação processual, lesando o direito de defesa da União, em vista da impossibilidade de contrariar pedidos até então inexistentes. Esse tratamento unilateral no processo não se compadece com a isonomia, nem tampouco com a igualdade processual, inscrita no artigo 5°, I, da Carta Magna e com os mencionados princípios retores da tutela jurisdicional.
Daí resulta, pois, a nulidade da sentença apelada, no que concerne à parte impugnada.
São essas as razões pelas quais a Apelante sustenta e pede que seja a presente sentença declarada nula, na parte em que o seu dispositivo trata de matéria estranha ao pedido, caracterizando julgamento ultra e extra petita.
III. Outras Razões.
Diante de uma situação delicada para toda a sociedade brasileira em relação aos fatos acontecidos no período de 1961 a 1979, a Lei n° 9.140 de 04 de dezembro de 1995, teve como objetivo principal a reconciliação e a pacificação nacional, na linha que tivera início com a Lei de Anistia (Lei 6.683/79).
Assim, reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão da participação em atividades políticas no referido período. Além disso, previu o pagamento de indenizações e criou uma Comissão Especial composta de familiares das pessoas desaparecidas, membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, membros do Ministério Público Federal e integrantes da Forças Armadas, cujas atribuições foram estabelecidas no seu artigo 4°:
"I - proceder ao reconhecimento de pessoas :
a) desaparecidas, não relacionadas no Anexo I desta lei;
b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, tenham falecido
por causas não naturais, em dependências policiais ou assememlhadas;
II - envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados;
III - emitir parecer sobre os requerimentos relativos a indenização que venham ser formulados pelas pessoas mencionadas no art. 10 desta lei."
Em face dos termos da referida Lei e dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão que dela resultou, vê-se que a postura do Poder Público - seja pelo Poder Legislativo, seja pelo Executivo - evoluiu inequivocamente, entre o momento em que foi proposta a ação em causa e a data em que proferida a sentença de que agora se cogita, no sentido da reconciliação e da pacificação nacional preconizadas na Lei nº 9.140/95. Por isso, não podem ser ignorados - nem contestados - fatos e situações cuja ocorrência a União veio a reconhecer por meio das aludidas providências de natureza legal e administrativa.
Assim, observado o princípio de reconciliação e de pacificação nacional - expressamente proclamado no art. 2º da Lei nº 9.140/95 - passou a ter força legal serem reconhecidas "como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, desde então, desaparecidas, sem que delas haja notícias." (v. art. 1º, da mesma Lei).
Por outro lado, não se poderá negar a repercussão que devam ter, no presente feito, os reconhecimentos de pessoas pela mencionada Comissão Especial, nas condições previstas no art. 4º da Lei nº 9.140/95.
Muito menos poder-se-á deixar de acolher os resultados das diligências por ela realizadas em cumprimento ao disposto no inciso II do mesmo art. 4º. Impõe-se lembrar, neste passo, que, em face do aludido diploma legal, já se acha estabelecida para a União - por meio da referida Comissão Especial - a atribuição de "envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados". (v. inciso II do art. 4º da Lei nº 9.140/95)
Por outro lado, também é certo que, por força da mesma Lei, a Comissão Especial "poderá solicitar" "documentos de qualquer órgão público", "a realização de perícias" e "a colaboração de testemunhas" (v. art. 9º, incisos I, II e III). Sendo assim, envidar esforços para a localização dos corpos dos familiares dos autores - desde que presentes as condições estabelecidas na mencionada Lei - passou a ser objeto de atribuição do Poder Público, independentemente do processo ou da sentença de que se cuida. E isso não pode ser ignorado no presente feito ou fora dele.
A Lei 9.140/95, portanto, além de ter conferido direito a indenizações aos familiares de pessoas desaparecidas, teve uma abrangência ainda maior.
Conforme certificado nos autos às fls. 781/784, a Comissão Especial requisitou e recolheu documentos e informações provenientes das Forças Armadas e de outros órgãos públicos, além de ter realizado missões na Região do Araguaia para levantamento de informações e busca de restos mortais das pessoas desaparecidas.
Também é certo que a Comissão Especial, com base nas informações colhidas, realizou missões da qual participaram peritos argentinos de renome internacional, designados por organismos de defesa dos direitos humanos e representantes dos familiares desaparecidos, cujos resultados encontram-se no presente processo.
De imediato, portanto, pode-se afirmar que pretensão dos autores já começou a ser atendida em vista da Lei n° 9140/95, na medida em que foram em princípio reconhecidas como mortas as pessoas que desapareceram no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 em razão de participação em atividades políticas.
A atividade do juiz no processo deve buscar fazer valer o direito material, sempre pautada na Lei. Ora, se a própria Lei n° 9140/95 já reconheceu parte do que se contém na inicial, não teria sentido a Apelante não reconhecer também, agora, o que ali se acha proclamado. Neste ponto, mister ressaltar que a jurisdição tem como escopo máximo a pacificação social com justiça.
Como muito bem salienta Cintra, Grinover e Dinamarco, o que distingue a jurisdição das demais funções do Estado (legislativa e administrativa) é precisamente, em primeiro plano, a finalidade pacificadora com o que o Estado a exerce.
Por intermédio da jurisdição, o Estado garante a ordem social e a estabilidade social, sendo o processo um instrumento a serviço da paz social. Neste ponto, lembra Ovídio Baptista da Silva8:
A Jurisdição é criada e organizada pelo Estado precisamente com a finalidade de pacificar, segundo a lei, os conflitos de interesses das mais diferentes espécies, abrangendo não só os conflitos de natureza privada, mas igualmente as relações conflituosas no campo do Direito Público.
Não se pode deixar de admitir, porém, a dificuldade que se a figura, à luz do que consta dos autos, para que sejam encontrados os restos mortais das pessoas desaparecidas na Região do Araguaia.
No particular, merecem atenção as reportagens com depoimentos de ex-combatentes, as missões da Comissão Especial, a caravana de familiares com a presença de integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil (fls. 1069/1088) e recentes expedições realizadas em 2001. O relativo insucesso das buscas muito se deve - pelo que se tem notícia - às características naturais e à amplitude da região a ser vasculhada.
Há que se atentar, igualmente para as circunstâncias em que teriam ocorrido os combates, dificultando os procedimentos de identificação e o sepultamento dos mortos; além disso, mesmo nos casos em que isso possa ter acontecido, não será fácil, nos dias de hoje, localizar com precisão os mesmos sítios. Também há notícia de que guerrilheiros foram enterrados pelos próprios companheiros.
"Que o movimento guerrilheiro tinha como princípios o respeito profundo aos cadáveres, bem como à integridade física dos feridos, sendo que, em relação aos cadáveres, tinha-se na prática o comportamento de sepultar os guerrilheiros na região da guerrilha e os mortos inimigos serem colocados em lugar de fácil descoberta." (grifou-se do original) (v. depoimento do atual Deputado Federal José Genoíno Neto às fls. 566/568).
Foi noticiado, além disso, que vários guerrilheiros teriam morrido de doenças e até de fome.
"Já sem poder estabelecer contatos com os sítios de posseiros dentro da mata, os guerrilheiros passaram a ficar sem alimentos e remédios e com isso se tornaram mais expostos às adversidades do meio. Embora a maioria deles tenha sido morta em combate, vários morreram de doenças - sobretudo malária e leishmaniose - ou de fome. " (v. reportagem às fls. 1032)
Doutra parte, segundo o depoimento de um combatente, "As própria condições locais da floresta densa , sem vias de comunicação, a alta temperatura e umidade faziam com que os corpos se decompusessem com rapidez, o que impedia a remoção para áreas mais distantes."( v. fls. 1090): Tais dificuldades explicam o resultado de expedição realizada em julho 2001 para identificação dos locais de sepultamento, como se acha no site www.desaparecidospoliticos.org.br:
"Uma equipe integrada por quatro procuradores da República, funcionários do Ministério Público e representantes da Comissão de Familiares de Desaparecidos Políticos deslocou-se no início de julho até a região do Araguaia para colher depoimentos e informações sobre o desaparecimento, morte e local de sepultura dos guerrilheiros.
Com a vinda de antropólogos forenses argentinos foi escavado um poço no município de São Domingos do Araguaia onde teria sido jogado o corpo de Marcos José de Lima (Zezinho), SEM QUE SEUS RESTOS MORTAIS FOSSEM ENCONTRADOS. Em Xambioá, perto da Base Militar também foram feitas escavações onde foram vistas duas covas, nas quais teriam sido enterrados guerrilheiros (possivelmente a Walquíria Afonso Costa), MAS NADA FOI ENCONTRADO. Uma terceira escavação foi feita no Brejo das Pacas, município de Brejo Grande, onde estaria enterrado Rodolfo Manuel, SEM CONTUDO SE CHEGAR AO RESULTADO ESPERADO."
Sem resultado positivo, igualmente, foi a denominada expedição Antígona, também em busca de informações e ossadas (coordenada, em outubro de 2001 pelo Deputado Federal Luiz Eduardo Greenhalgh).
"Em outubro do ano passado, uma expedição da Comissão de Direitos da Câmara dos Deputados, integrada por familiares, médicos legistas do Instituto Médico Legal (IML) do Distrito Federal e geólogos da Universidade de Brasília, esteve na região à procura de corpos de guerrilheiros. A diferença entre esta e outras caravanas que por ali passaram anteriormente foi a presença de dois militares que participam dos combates à Guerrilha do Araguaia (1972-1975): o ex-sargento do Exército João Sacramento Santa Cruz e o hoje coronel da reserva Pedro Corrêa Cabral, que desde 1993 denuncia o atual prefeito de Curionópolis (PA), Sebastião Curió, como chefe da patrulha do extermínio, desaparecendo com guerrilheiros já aprisionados pelos militares. A Força Aérea Brasileira, a pedido da CDH, cedeu dois helicópteros e um Bandeirante para as buscas.
Há nove anos, Cabral publicou o livro Xambioá - novela baseada em fatos reais, que rendeu matéria de capa da Veja, "Eu vi os corpos queimando". Segundo ele, além de sumir com prisioneiros da Casa Azul, Curió teria patrocinado também a "operação limpeza" - desenterravam-se corpos da mata para queimá- los junto a pneus e gasolina na serra das Andorinhas, em São Geraldo (PA). Dois helicópteros teriam participado da operação, um deles pilotado por Cabral.
Durante a expedição Antígona, coordenada pelo deputado Luiz Eduardo Greenhalgh em 2001, Cabral, QUE SOBREVOOU, EM VÃO, POR TRÊS DIAS a serra à procura do local macabro, afirmou que o helicóptero era o mesmo utilizado no combate à guerrilha." (grifou-se) (v. site da UOL - Cadernos do Terceiro Mundo)
Incerta, assim, é a possibilidade da localização e do encontro de todos os restos mortais dos familiares dos autores. Por essa razão, há que ser considerada a hipótese em que, a despeito de todas as diligências determinadas pela sentença, a obrigação nela imposta à Apelante - obrigação esta de fazer e de obter determinados resultados venha a se revelar inviável quanto ao integral resultado pretendido. Isso, em relação a algum, a alguns, ou a significativa parcela dos familiares dos autores da ação.
Sendo assim, tal obrigação se resolveria em termos de impossibilidade da prestação do fato objeto da condenação, não podendo subsistir, diante disso, sequer em tese, a sanção de multa pecuniária infligida à Apelante pela sentença apelada.
Tal sanção, em circunstâncias tais, afrontaria os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Sobre o primeiro deles, lembra José Carvalho dos Santos10 que "razoabilidade é a qualidade do que é razoável, ou seja, aquilo que se situa dentro dos limites aceitáveis, ainda que os juízos de valor que provocaram a conduta possam dispor de forma um pouco diversa.
Ora, o que é totalmente razoável para uns, pode não o ser para outros. Mas, mesmo quando não o seja, é de reconhecer que a valoração se situou dentro dos standard de aceitabilidade."
Quanto ao segundo, o mestre Celso Antonio Bandeira de Mello ensina:
"Este princípio enuncia a idéia - singela, aliás, conquanto freqüentemente desconsiderada - de que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado
para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas."
Em face de tais princípios, e considerando a natureza da obrigação de resultado imposta à Apelante - independentemente da possibilidade de êxito das diligências a ela determinadas -, verifica-se a inadmissibilidade da multa em questão, que não teria justa causa se impossibilitado tal resultado.
Ademais, tendo sido a sanção vinculada ao cumprimento integral da sentença no prazo de cento e vinte dias, certo é que não se mostra razoável o estabelecimento dessa condição temporal tão exígua, tendo em vista o decurso de mais de 30 anos desde a morte ou do desaparecimento das pessoas em causa, bem como as circunstâncias em que isso ocorreu.
Há que se levar em conta, igualmente, quanto ao ponto, que a exigüidade desse prazo não se revela apenas em virtude das dificuldades já referidas, pertinentes à região do conflito ou da precisão dos locais onde eventualmente foram enterrados os corpos; haverá necessidade, também, de tempo bastante para identificações mediante perícias técnicas. Veja-se, a propósito, o relatório de fls. 849/989.
No site www.desaparecidospoliticos.org.br, outrossim, acham-se descritas as dificuldades para identificação das ossadas:
"No cemitério de Xambioá encontrou-se três ossadas, mas somente uma apresenta características de um guerrilheiro. Tal ossada já havia sido encontrada e abandonada no mesmo cemitério pelo Dr. Badan Palhares, em 1991. Em São Raimundo, na Reserva Indígena dos Sororós, recuperou-se duas ossadas de dois prováveis guerrilheiros. As péssimas condições em que foram encontradas e a ausência de crânios não permitem que seja realizado o exame de DNA e sua identificação. Nos demais locais investigados -- São Geraldo, Caçador, Oito Barracas, Serra das Andorinhas, DNER e Fazenda Brasil- Espanha -- não foram encontrados esqueletos."
Indiscutível é que o Estado através da Lei n° 6.683/79 eprincipalmente da Lei n° 9140/95 assumiu que ocorreram excessos eprocurou, de forma legal, conciliar e pacificar interesses antagônicos.
É certo, também, que leis e indenizações não têm o condão de suprimir a dore o sofrimento de familiares que perderam seus entes queridos e, muitomenos, de recompor vidas que se foram.
A Apelante reconhece, pois, a legitimidade da pretensão dos Autores, fundada em alguns fatos já notórios, ou em outros que as provas dos autos vieram a demonstrar. Postula, no entanto, que os efeitos de tal reconhecimento se restrinjam aos limites que os próprios Autores estabeleceram e no âmbito do que juridicamente se mostra razoável.
IV. Conclusão.
Diante do exposto, requer a Apelante que o presente recurso seja conhecido e provido, para o efeito de ser anulada em parte a r. decisão recorrida, em face dos julgamentos extra e ultra petita, bem como da inadmissibilidade da multa imposta sob a condição nela estipulada.
Termos em que espera deferimento.
Brasília/DF, 27 de agosto de 2003.
Alvaro Augusto Ribeiro Costa.
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