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30jun03
Sentença: Guerrilha do Araguaia: Indicaçäo de sepultura, atestados de óbito e exibiçäo de documentos.
PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA FEDERAL DE 1a INSTÂNCIA
SEÇÃO JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERALVara: 1a VARA FEDERAL
Processo: 82.00.24682-5 classe: 1900 - OUTRAS 228 HADTCC*
Data de Autuação: 19/02/1982 Distribuição: 1 - CADAST. DE PROCESSOS ANTIGOS (05/10/1998) N° de volumes: 5 (CINCO) e 2 (DOIS) APENSOS Objeto da Petição: 999 - OUTROS Observação: "GUERRILHA DO ARAGUAIA" / INDICAÇÃO DE SEPULTURA, ATESTADOS DE ÓBITO E EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS - SENTENÇA 307/2003 PARTca" Espéci" Nome AUTOR ACARY VIEIRA DE SOUZA AUTOR ALZIRA COSTA REIS AUTOR AMINTHAS RODRIGUES PEREIRA AUTOR ANTÔNIO PEREIRA DE SANTANA AUTOR CONSUETO FERREIRA CALLADO AUTOR CYRENE MORONI BARROSO AUTOR EDWIN COSTA AUTOR ELOÁ CUNHA BRUM AUTOR ELZA CONCEIÇÃO BASTOS AUTOR ELZA PEREIRA COQUEIRO AUTOR ERMELINDA MAZZAFERRO BRONCA AUTOR HELENA PEREIRA DOS SANTOS AUTOR JULIA GOMES LUND AUTOR JULIETA PETTT DA SILVA AUTOR LUÍZA MONTEIRO TEIXEIRA AUTOR LULITA SILVEIRA E SILVA AUTOR MARIA LEONOR PEREIRA MARQUES AUTOR ROBERTO VALADÃO ALMOKDICE AUTOR ROSALVO CIPRIANO DE SOUZA AUTOR VICTORIA LAVINIA GRABOIS OLÍMPIO AUTOR WALTER PINTO RIBAS AUTOR ZELI EUSTÁQUIO FONSECA RÉ UNIÃO FEDERAL Adv Aut LUIZ FUUARDO GREENHALCH (SP00038555) p. 1
EMENTA
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. PROCESSUAL. RESPONSABILIADE OBJETIVA DO ESTADO. CONFLITO INTERNO DENOMINADO 'GUERRILHA DO ARAGUAIA'. DESAPARECIMENTO OU MORTE DE GUERRILHEIROS. PROVAS E INDÍCIOS VEEMENTES DO FATO. RECONHECIMENTO DA RESPONSABILIADE ESTATAL. CONDENAÇÃO ESPECÍFICA.
1. Possibilidade jurídica do pedido dos familiares das vítimas reconhecida por decisão do TRF/1aR. Pretensão dos Autores restrita à indicação, pela Ré, do local de sepultamento. Documentos de valioso conteúdo probatório. Caso de presumível prática do delito de desaparecimento forcado ou involuntário de pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia.
2. Precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Blake contra a República da Guatemala e caso Neira Alegria contra o Estado do Peru. Peculiares deste processo permitindo admitir, além da prova testemunhai e documental, também a prova circunstancial, fundada em indícios e presunções, pois deles possível inferir conclusões consistentes sobre os fatos da lide, sendo suficiente a conjunção de indícios relevantes para fundamentar a presunção judicial.
3. Ausência de contradição no pedido dos Autores quanto a estarem vivos ou mortos seus familiares, na medida em que a morte das vítimas emerge de conclusão lógica dos fatos apurados, estando respaldada pelas normas dos artigos 10 e 482 do Código Civil anterior e artigos 6° e 38 do Código Civil em vigor que regulam a presunção de morte e a sucessão definitiva.
4. Em caso de desaparecimento forçado não é lícito atribuir o ônus da prova exch vivamente aos familiares da vítima, por constituir no mínimo insensatez, na medida em que uma das principais motivações da prática desse ilícito é precisamente a intenção de dissimular as provas, notadamente no período em que verificada a ocorrência da Guerrilha do Araguaia.
5. É fato que os confrontos ocorreram em regiões inóspitas, em meio à floresta, dado relevante que impõe considerar a possibilidade de circunstâncias adversas que poderiam ter impossibilitado às forcas militares uma atuação escorreita, dentro dos ditames legais do Estado de Direito, no que tange ao sepultamento e identificação de corpos. Malgrado isso, assiste direito aos familiares das vítimas ter ciência cabal dos pormenores da ocorrência.
6. Inconsistência de tese segundo a qual, em operações militares envolvendo um contingente de alguns milhares de soldados destinados a combater uma tímida aglomeração de guerrilheiros, tivesse o Estado, em todas as campanhas de cerco e aniquilamento, perdido o controle da situação e ficado incapacitado de proceder de forma regular.
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7. Existência de prova inequívoca de que o Exército aprisionou e interrogou as vítimas, negando informes a respeito do desaparecimento delas, fato a gerar sofrimento e angústia, além de um sentimento de insegurança, frustração e impotência perante a abstenção das autoridades públicas em investigar os fatos.
8. O direito a um sepultamento condigno constitui corolário do respeito aos mortos e está consagrado, no plano internacional, nos dispositivos das Convenções de Genebra, que integram o ordenamento jurídico do Direito Humanitário.
9. O Direito Internacional, à época dos confrontos na região do Araguaia, já continha normas relativas ao trato dos mortos em conflito armado, às quais estava obrigado o Estado Brasileiro, signatário das quatro Convenções de Genebra.
10. A entrega dos restos mortais das vítimas a seus familiares, a fim de que possam ser dignamente sepultados, e o fornecimento das informações sobre a morte, constituem providências capazes de dar cumprimento à obrigação estatal.
11. Somada à dor da perda tem-se nesta demanda a angústia de conviverem os Autores com os efeitos do desaparecimento forçado dos entes queridos, o destino ignorado, a opressão de um silêncio fabricado.
12. O texto da Carta Política de 1988 retraía a ruptura com o regime autoritário, constituindo-se no marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, já que atribui aos direitos e garantias fundamentais relevância extraordinária. Assim, o valor da dignidade humana, içado ao posto de princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1°, inciso III) impõe-se como parâmetro a orientar o trabalho do intérprete do Direito e do aplicador da lei.
13. Os múltiplos direitos ofendidos pela prática do desaparecimento forçado, como o direito à vida e à integridade física, não podem ser reparados porque são, por natureza, não-restituíveis, razão de ser da ausência de postulação nesse sentido. Entretanto, os Autores podem ser contemplados com o direito à verdade dos fatos, aos restos mortais para um sepultamento digno, como medidas necessárias para que se dê o reconhecimento da dignidade inerente à pessoa humana.
14. Procedência do pedido. Condenação da Ré (União) para cumprimento das exigências de indicação de local dos restos mortais das vítimas, promovendo-lhes sepultamento condigno com informações necessárias à lavratura da Certidão de Óbito, e dados outros referentes à investigação dos fatos noh pena d? multa cominatória diária.
15. Extinção do processo com julgamento de mérito neste grau de jurisdição (CPC, art. 269, l).
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PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA FEDERAL DE 1a INSTÂNCIA
SEÇÃO JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERAL
SENTENÇA
CLASSE
PROCESSO
AUTORES
ADVOGADO
RÉU
JUÍZO
307/2003
1500 - AÇÃO DE RITO ORDINÁRIO
82.0024682-5
JÚLJA GOMES LUND E OUTROS
LUIZ EDUARDO GREENHALGH
UNIÃO FEDERAL
1a VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO DF
JULIA GOMES LUND, LULITA SILVEIRA E SILVA, MARIA LEONOR PEREIRA MARQUES, ERMELINDA MAZZAFERRO BRONCA, ANTÔNIO PEREIRA DE SANTANA, ELZA PEREIRA COQUEIRO, ALZIRA COSTA REIS, VICTORIA LAVINIA GRABOIS OLÍMPIO, ROSALVO CIPRIANO DE SOUZA, ROBERTO VALADÃO ALMOKDICE, EDWIN COSTA, HELENA PEREIRA DOS SANTOS, JULIETA PETIT DA SILVA, AMINTHAS RODRIGUES PEREIRA, ZELI EUSTÁQUIO FONSECA, ACARY VIEIRA DE SOUZA GARLIPPE, WALTER PINTO RIBAS, ELOÁ CUNHA BRUM, CONSUETO FERREIRA CALLADO, LUIZA MONTEIRO TEIXEIRA, ELZA CONCEIÇÃO BASTOS e CYRENE MORONI BARROSO, devidamente qualificados nos autos, propuseram a presente AÇÃO DE RITO ORDINÁRIO em face da UNIÃO FEDERAL, a fim de compeli-la a indicar a sepultura de seus familiares mortos, para que possam ser lavrados os competentes atestados de óbito, serem trasladados os corpos e fornecido o relatório oficial do Ministério da Guerra, sob pena de arcar a ré com multa diária. .
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Aduzem que são familiares de cidadãos brasileiros que, no período de 1966 a janeiro de 1975, instalaram-se em área à margem do Rio Araguaia e integraram o movimento armado de caráter político e revolucionário denominado "Guerrilha do Araguaia".
Prosseguem alegando que seus familiares, integrantes da guerrilha e membros do Partido Comunista do Brasil, foram capturados e/ou mortos quando resistiam à ação das forças militares destinada a sufocar o movimento, o que ocorreu entre 12 de abril de 1972 e janeiro de 1975. Esclarecem que são desconhecidos os destinos de seus familiares, que se presumem mortos, bem como é ignorada a localização de seus restos mortais.
Sustentam, contudo, que os mortos eram identificados pelo Exército antes de serem enterrados, que mantém arquivados os dados relativos à identificação e sepultamento dos mortos, compilados em um Relatório Oficial datado de janeiro de 1975, instruído com o nome e a qualificação de todos os guerrilheiros que participaram do movimento.
Os documentos de fls. 23/159 instruem a inicial.
Retificação do valor da causa deferida, tendo em vista tratar-se de ação para a prestação de fato cujo valor é inestimável (fl. 163).
Em contestação apresentada às fls. 169/211 a União argüiu, em preliminares, a impossibilidade jurídica do pedido, sua ilegitimidade passiva ad causam, a inexistência de interesse processual, a impropriedade da via cominatória e a prescrição qüinqüenal. No mérito, alegou que os autores não demonstraram a presença de seus familiares na região do Araguaia, a participação destes nos confrontos com os órgãos de segurança, a evidência de seus óbitos, nem a existência do relatório oficial cuja apresentação postularam.
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Os Autores manifestaram-se sobre as preliminares às fls. 213/215, requerendo a produção de provas.
Saneando o feito, o ilustre juiz processante rejeitou as preliminares de prescrição, ilegitimidade passiva ad causam, ausência de interesse processual e impropriedade da via eleita, bem como deferiu a produção de prova documental e testemunhai, determinando a Ré, independente de sigilo ou segredo militar, que fornecesse a relação dos civis mortos ou recolhidos mortos pelos militares, a relação das atividades ali desenvolvidas e o destino dos corpos, bem como todos os documentos, oficiais ou não, relativos às baixas civis, com indicação de autoria e responsabilidade pelos referidos textos (fls. 216/218).
A Ré, contudo, limitou-se a anexar aos autos parecer da Consultoria Jurídica do Ministério do Exército (fls. 222/273). Os Autores juntaram farta documentação referente às alegações da exordial (fls. 284/527).
Depoimentos pessoais dos autores Cyrene Moroni Barroso, Julia Gomes Lund, Helena Pereira dos Santos, Alzira da Costa Reis, Consueto Ferreira Callado e Antônio Pereira de Santana (fls. 529/541).
Os Autores juntaram mais documentos (fls. 542/554).
Depoimentos das testemunhas José Genoíno Neto, Fernando Antônio Torres Portela, Wladimir Ventura Torres Pomar, Haroldo Borges Rodrigues de Lima, Aldo da Silva Arantes, Paulo César Fonteles de Lima, Criméia Alice Schmidt de Almeida, Danilo Carneiro, Dower Moraes Cavalcante, Glênio Fernandes de Sá e Elza de LiiikJ McMinrnt (fls. 565/594).
Memoriais apresentados às fls. 596/603 e 605/630.
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Sentença às fls. 634/641, extinguindo o processo sem julgamento do mérito ao fundamento de o pedido ser jurídica e materialmente impossível, não obstante o reconhecimento de seu grande valor histórico.
Os autores interpuseram apelação às fls. 647/654, fundada, entre outros, no dispositivo legal que determina ao juiz decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito quáfndo a lei for omissa (art. 4° LICC).
Contra-razões de apelação às fls. 657/662.
Parecer ministerial às fls. 667/672, opinando pelo provimento do recurso.
Acórdão do egrégio TRF 1a Região (fls. 678/701), dando provimento à apelação, por unanimidade, para reformar a sentença e determinar o julgamento do mérito da demanda.
O Tribunal, no julgamento, reconheceu o direito "subjetivo público do indivíduo de sepultar e homenagear seus mortos, segundo sua crença religiosa", bem como entendeu ter a parte direito à prova, dando aplicação à norma do art. 24 da Lei 8.159/91 (que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados), facultando ao Poder Judiciário, em qualquer instância, determinar a exibição reservada de qualquer documento sigiloso, sempre que indispensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação pessoal da parte.
O Tribunal adotou, também, o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça, a saber: "Se a pretensão dos autores depende de produção de prova requerida, esta não lhe pode ser negada, nem reduzido o âmbito de seu pedido, sob pena de configurar-se uma situação de autêntica denegação de justiça" (STJ - 3a Turma - REsp 5.037/SP, Relator Ministro CLÁUDIO SANTOS, DJU de 24.06.1991, pág. 1.035 e RSTJ Vol. 21, pág. 416).
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A União opôs Embargos de Declaração ao referido Acórdão (fls. 704/710) ao fundamento de omissão e contradição no julgado. Os Embargos foram improvidos (fls. 712/722). A União interpôs Recurso Especial (fls. 726/732).. Contra-razões ao Recurso Especial (fls. 734/741). Recurso Especial inadmitido (fl. 743).Inconformada, a União interpôs Agravo de Instrumento em Recurso Especial (fl. 746). O egrégio Superior Tribunal de Justiça negou seguimento ao Agravo, retornando os autos ao Juízo da 1a Vai d (H. 748).
Decisão de fl. 751 determinou à União que, no prazo de 30 (trinta) dias, encaminhasse o Relatório da Guerrilha do Araguaia. Contra essa decisão a União interpôs Agravo de Instrumento ao qual foi negado seguimento (fl. 1298).
A União, às fls. 770/780, com documentos de fls. 781/793, sustentou o esvaziamento da pretensão dos Autores ante o advento da Lei 9.140, de 04 de dezembro de 1995 e das providências por ela determinadas, requerendo, assim, a improcedência do pedido.
Os autores ressaltaram a recalcitrância da Ré, que se negou a cumprir mandado judicial determinando a apresentação de prova, pelo que requereram a aplicação da norma do art. 359 do Código de Processo Civil (fls. 797/804).
Decisão assinalando o prazo de 30 (trinta) dias para a Ré apresentar o Relatório da Guerrilha, sob pena de serem reputados verdadeiros os fatos aludidos na exordial (fls. 814/817).
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A União manifestou-se às fl. 820, com documento à fl. 821, no sentido de inexistir o referido Relatório. Foram acostados aos autos, provenientes do Ministério da Justiça, cópias dos documentos em poder da Comissão Especial estabelecida pela Lei 9.140/95, relativos aos procedimentos de reconhecimento das mortes dos familiares dos Autores e pagamento de indenizações (fls. 827/1296).
Instados à manifestação sobre os indicados documentos acostados, os Autores aduzirem já ter conhecimento de toda a documentação e requereram o julgamento da lide (fls. 1303/1304).
O Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Distrito Federal solicitou vista dos autos (fl. 1306), o que foi deferido, devolvendo-os sem nada requerer (fl. 1309).
Esse o relatório.
Tudo visto e examinado, passo à DECISÃO.
DAS PRELIMINARES:
Todas as preliminares argüidas já foram analisadas e decidas pelo juiz processante, estando acobertadas pelo manto da preclusão.
DO MÉRITO:
Os Autores, familiares de cidadãos que participaram do movimento intitulado Guerrilha do Araguaia, aniquilado pelas Forças Armadas no período de abril de 1972 a janeiro de 1975, visam por esta ação a localização da sepultura de seus parentes, o traslado dos corpos e o fornecimento de informações contidas no Relatório oficial do Ministério da Guerra datado de 5 de janeiro de 1975.
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A pretensão merece prosperar.
De fato, ante às inúmeras provas constantes dos autos acerca da Guerrilha do Araguaia, tem-se que a sua ocorrência é fato incontestável. Também não cabe negar-lhe a importância histórica. Tempos como aqueles, de repressão política deliberada e violação sistemática de direitos fundamentais, não devem ser esquecidos ou ignorados.
Ao contrário, uma nação não pode tentar tornar-se livre, justa e solidária, pretender construir seus alicerces sobre os pilares da democracia e do respeito à dignidade da pessoa humana, sem antes enfrentar seu passado. É imperioso analisar e tentar compreender os fatos tristes de sua história que não deseja ver repetidos.
De ser considerado, por aceitável, que são louváveis as tentativas de politização e conscientização de uma população que se vê submetida a um regime de supressão de liberdades e direitos fundamentais. Por que só através da consciência crítica e do questionamento é que uma sociedade se torna capaz de interferir e transformar a realidade da opressão.
Recentemente, a imprensa noticiou com detalhes diversos fatos relativos à Guerrilha do Araguaia: depoimentos de sobreviventes, depoimentos de militares que participaram da repressão ao movimento, descoberta de fossas contendo ossadas de supostos integrantes do movimento, identificação de algumas ossadas.
Todas essas descobertas corroboram as informações trazidas aos autos pelos autores, dão respaldo a suas alegações, confirmam suas inquietações. Vários são os testemunhos da existência da guerrilha e do massacre dos guerrilheiros, não há como ignorar essa realidade.
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Desse modo, os autores pretendem ver deferida a possibilidade de dar sepultura digna e conhecida a seus familiares, enterrando-lhes os restos mortais, com todas as implicações culturais e emocionais verificadas neste significativo ato. Pleiteiam também o acesso às informações concernentes ao destino que seus familiares tomaram.
Na verdade, os dois pedidos devem ser analisados como um todo, já que, em muitos casos, a informação prestada pela Ré é o que possibilitará o acesso dos Autores aos restos mortais de seus familiares.
O pleito refere-se aos mortos, mas afeta sobremaneira aos familiares vivos, posto que só então, após o desfecho formal e ritualístico dado à existência de seus entes queridos, serão capazes de prosseguir com suas vidas, pois terão resolvida a angústia gerada pelo desconhecimento do destino dos seres amados.
O pleito não se restringe aos estreitos limites de um processo de jurisdição voluntária cujo objetivo seja a decretação de ausência para os fins da sucessão hereditária e administração dos bens dos ausentes.
Muito menos esgota-se a pretensão no exercício das faculdades instauradas pela Lei de Anistia (Lei 6.683/79), cujo procedimento (art. 6°) objetiva a decretação por sentença da ausência de pessoas envolvidas em atividades políticas, gerando a presunção de morte do desaparecido para os fins de dissolução do casnm^nio n nb-'ftura da sucessão definitiva (§ 4° do art. 6°).
Em momento algum foi sustentado pelos Autores que o escopo do presente processo é a lavratura do atestado de óbito. É indiscutível que o registro dos óbitos constitui mera conseqüência do descobrimento da verdade e do acesso aos restos mortais.
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Com evidência, também o procedimento administrativo instaurado pela Lei 9.140/95 não é capaz de satisfazer a pretensão dos autores, pois cuida-se de postulaçao muito mais abrangente, que abarca direitos fundamentalíssimos como o direito à verdade, o direito à proteção da família, o direito de prestar aos extintos o culto de tradição oferecendo-lhes digna morada eterna.
Cuida-se de pleito que encerra elevado valor moral, histórico e cultural.
Todavia, nas palavras da Ré (fl_. 207), não está "alimentada a pretensão dos autores com a prova por estes trazida aos autos..., não demonstram a presença efetiva de seus subversivos familiares na região do Araguaia..., a sua participação nas pelejas com os componentes dos órgãos de segurança..., a evidência de seus óbitos... em confrontos armados em que se tenham envolvido..., a existência escorreita do relatório oficial do Ministério do Exército datado de 05 de janeiro de 1975."
Assim, a contestação da Ré, no mérito, apóia-se na alegação de ter sido intentada a ação sem um mínimo de subsídio probatório e de estar a pretensão eivada pela ausência de fundamento jurídico; ademais, sustenta não ser devedora de obrigação alguma em relação aos Autores e seus familiares.
Da Responsabilidade do Estado no Desaparecimento Forcado de Pessoas
Todo o Estado está obrigado a respeitar o direito à vida e à integridade física de seus cidadãos, para falar apenas dos mais fundamentais. Se assim não o fosse, qual seria o propósito da existência do Estado? Existiria ele para o seu próprio regozijo? Deteria ele a faculdade de exterminar sumariamente seus próprios cidadãos, ou aqueles que lhe desagradassem quando bem lhe conviesse?
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A figura do Estado é uma abstração, que não contém uma finalidade ou motivação em si mesma. O Estado existe apenas, e tão-somente, para promover o bem estar de seu povo, gerenciar a vida em sociedade, perseguir valores como a igualdade, o desenvolvimento, a justiça e a liberdade.
Como bem preceitua o art. 1° da Constituição Federal, todo o poder emana do povo, do que decorre que não pode ser exercido em detrimento deste.
Mas a Constituição vai além, e consagra a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado democrático de direito que constitui a República Federativa do Brasil.
Também por força da Constituição Federal, impõe-se hoje ao Estado brasileiro reger-se, nas relações internacionais, pelo princípio da prevalência dos Direitos Humanos.
No dizer de Jorge Miranda:
"Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz a pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado"1.
Portanto, garantir o exercício de direitos fundamentais é sim uma obrigação passível de ser exigida do Estado. No âmbito da Teoria Geral dos Direitos Humanos este é um conceito basilar, que se reveste da maior importância, pois fundamenta toda a existência do aparato protetivo internacional com seus diversos órgãos, mecanismos e instrumentos.
1. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 1988, vol. 4, p 106
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Sob o ângulo do direito internacional, é obrigação traduzida no dever que os Estados assumem, quando signatários dos tratados internacionais de direitos humanos, de respeitar e garantir (fazer respeitar) os direitos ali enunciados.
Conforme essa obrigação, todo desprezo aos.direitos humanos reconhecidos nos tratados internacionais que possa ser atribuído à ação ou omissão de qualquer autoridade pública constitui um fato imputável ao Estado e gera sua responsabilidade no plano internacional.
Com efeito, o respeito aos direitos humanos funciona como restrição ao exercício de toda função pública. Porque há atributos invioláveis da pessoa humana que não podem ser legitimamente desconsiderados pelo exercício do poder público, esferas individuais que o Estado não pode vulnerar ou nas quais só pode intervir de forma limitada.
Essa obrigação vai além e engloba o dever de garantir o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos para toda pessoa que está sujeita ao Estado, devendo este organizar todo o aparelho governamental de tal forma que seus órgãos sejam capazes de assegurá-los administrativa e judicialmente.
Isso implica dizer que, mesmo que não tenha sido o Estado o causador das violações aos direitos fundamentais, cabe a ele prevenir, investigar e sancionar toda violação aos direitos leconhfcüdos internacionalmente. Deve, ainda, buscar o restabelecimento do direito transgredido e, se não for possível, a reparação dos danos ocasionados pelas violações aos direitos humanos.
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No âmbito do direito internacional,, verifica-se uma infração aos tratados de proteção de direitos humanos, com a conseqüente responsabilização do Estado, mesmo que não esteja individualmente identificado seu agente. O decisivo é elucidar se uma determinada violação aos direitos consagrados teve lugar com o apoio ou a tolerância do poder público, ou se este agiu de modo a não preveni-la ou deixá-la impune.
Torna-se desnecessária, nesse aspecto, a comprovação da responsabilidade do Estado por violações a direitos fundamentais para que estas lhe sejam imputáveis, tendo em vista estar o Estado obrigado a respeitar e a fazer respeitar direitos humanos.
Em suma, a obrigação de respeitar e fazer respeitar direitos humanos traduz-se no dever jurídico de prevenir, razoavelmente, as violações, bem como investigar seriamente (com os meios ao seu alcance) aquelas que tenham sido cometidas dentro do âmbito de sua jurisdição a fim de identificar os responsáveis, impor-lhes as sanções pertinentes e assegurar à vítima uma adequada reparação.
Se o aparelho estatal agir de modo a que violações de direitos humanos fiquem impunes e não se restabeleça a vítima (na medida do possível) na plenitude de seus direitos, o Estado viola suas obrigações convencionais no plano internacional.
Importa agora analisar a questão sob o prisma do direito interno.
O art. 37, § 6° da Constituição Federal estabelece:
"As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."
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Aqui se consagra a teoria da responsabilidade objetiva do Estado. Com base nessa teoria, para configurar a responsabilidade não é necessária a ocorrência de culpa, basta a constatação do dano e do nexo da causalidade. Cretella Júnior ensina que havendo dano e nexo causai, o Estado será responsabilizado patrimonialmente2.
Idéia correlata é a da teoria do risco administrativo, segundo a qual, "o dano sofrido pelo indivíduo deve ser visualizado como conseqüência do funcionamento do serviço público, não importando se esse funcionamento foi bom ou mau".3
O direito brasileiro recepciona ambas as teorias. Assim, basta a relação de causalidade entre o dano e o ato do agente público para ensejar a responsabilidade, que é socializada, repartida entre todos. A esse respeito, ensina Caio Mário da Silva Pereira:
"Não deve um cidadão sofrer as conseqüências do dano. Se o funcionamento de um serviço público, independentemente da verificação de sua qualidade, teve como conseqüência causar dano ao indivíduo, a forma democrática de distribuir por todos a respectiva conseqüência conduz a imposição à pessoa jurídica do dever de reparar o prejuízo e, pois, em face de um dano, é necessário e suficiente que se demonstre o nexo de causalidade entre o ato administrativo e o prejuízo causado"4
Partindo do pressuposto de que a atividade do Estado deve ser exercida no interesse de toda a coletividade, os danos que dela resultem não podem pesar mais sobre uns e menos sobre outros. Se isso ocorrer, ou seja, se da intervenção do Estado resultar prejuízo para alguns, a coletividade deve repará-lo, exista ou não culpa por parte dos agentes públicos.5
2 CRI: i IÍLI.A JÚNIOR, José. O Estndo e a Obrigfíçàc de Indenizar , Ed. Saraiva, São Paulo, 1980, p. 105.
3. fnoro, Rui. Respnníabiliflade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, >99. p.507.
4 Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1961, vol. l, p.466.
5 ST(Xü, op.cit, supra, n.2, p.5()8.p. 16
Em suma, a existência do nexo da causalidade entre a ação da administração e os danos causados aos particulares é o fundamento da responsabilidade do Estado.
Na teoria da responsabilidade por ato lícito, o fundamento está no princípio da igualdade. Na teoria da responsabilidade por ato ilícito, a responsabilidade decorre do princípio da legalidade. No caso em análise, entendo que os dois tipos de atos foram praticados pelo Estado. O combate a uma guerrilha armada, que ameaça a paz e a segurança nacionais reveste-se de legalidade, posto que é necessário proteger a sociedade das infrações à ordem jurídica.
Contudo, por mais graves que possam ser certos delitos, e culpáveis os réus que os praticaram, não se pode admitir que o poder seja exercido sem limites. O genocídio dos indesejáveis é crime injustificável; não há estado de emergência, de exceção ou de suspensão de garantias individuais que o legitime. Nenhuma atividade do Estado pode ser exercida fundada no desprezo à dignidade da pessoa humana.
A prisão arbitrária, a prática de tortura, a execução sumária, a ocultação do cadáver, enfim, os atos que tipificam o delito de desaparecimento forçado de pessoas são atos ilícitos e tão lesivos à coletividade quanto o próprio movimento armado.
Todavia, a teoria da responsabilidade comporta causas excludentes que afastam a responsabilidade e causas atenuantes que a minimizam. Verificam-se essas causas quando presentes força maior, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro e estado de necessidade.
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Os fatos falam por si: o período de tristes lembranças da história nacional, tão bem retratado na literatura . nacional, deixam certo o uso da força das armas contra a força das idéias; o arrastão do poder constituído e mantido sem o respeito aos princípios democráticos sobre os cidadãos que ousaram se insurgir contra o governo do medo.
Nesse contexto, aflora hialino que o governo ditador, então instalado em nosso país, não agiu sob qualquer excludente. Patente, portanto, a existência do nexo de causalidade entre a ação das Forças Armadas brasileiras e o desaparecimento ou morte dos familiares dos Autores. Na esteira da avançada doutrina do Direito Internacional dos Direitos Humanos, entendo presente também o nexo de imputabilidade, pelo que atribuo ao Estado o desaparecimento dos familiares dos Autores.
O princípio da responsabilidade do Estado embasa todo o sistema jurídico democrático, e, ao lado de princípios como o da legalidade e o da igualdade, atua como elemento garantidor da inviolabilidade dos direitos fundamentais do indivíduo.
Quanto à responsabilidade objetiva do Estado no presente caso, é importante ressaltar que a violação em questão tem caráter permanente, está a acontecer no presente, razão de estar se aplicando a norma inserida no art. 37 § 6° da Constituição Federal, sem retrospectiva histórica. Ainda que se questione a aplicação da teoria civilista ao presente caso, é imperioso lembrar que não estamos diante de um casu simples de um dano que, causado a particular pelo Estado, deve ser reparado. Estamos, isso sim, diante de gravíssimas violações de direitos humanos. Mister se faz ressaltar, então, o caráter da violação em questão.
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Como salientou a Corte Interamericana de Direitos Humanos6, por ocasião do julgamento do caso Velásquez Rodrigues contra o Estado de Honduras (sentença de 29 de julho de 1988), o fenômeno dos desaparecimentos forçados constitui uma forma complexa de violação dos direitos humanos, uma das mais graves e cruéis pois não só produz a privação arbitrária da liberdade, mas acarreta outros delitos conexos já que coloca a vítima em um estado completamente indefeso, subtraindo-a da proteção da lei.
Trata-se de um delito entendido como violação múltipla e contínua de numerosos direitos reconhecidos. O fenômeno do desaparecimento é composto, inter alia, pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade e segurança pessoais, do direito a não ser detido ou preso arbitrariamente, a não ser submetido a torturas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, ao reconhecimento da personalidade jurídica perante a lei, do direito a um recurso eficaz perante os juizes ou tribunais nacionais, direito a um juízo independente e imparcial e ao devido processo legal.
Nesse caso, a Corte condenou o Estado de Honduras, considerando que o contexto em que ocorreu o desaparecimento e a circunstância de que sete anos depois continuava sendo ignorado o paradeiro de Velásquez Rodrigues, são por si suficientes para concluir que ele havia sido privado da sua vida, tendo sido vítima de autoridades cuja prática sistemática compreendia a execução sem julgamento dos detidos e a ocultação do cadáver para assegurar sua impunidade.
A Corte também entendeu que tudo isso, ligado à falta de investigação do ocorrido, caracterizou uma infração de um dever jurídico, por parte do Estado de Honduras, o dever de garantir a toda pessoa sujeita à sua jurisdição a inviolabilidade da vida e o direito de não tê-la arbitrariamente privada.
6 Desneccssári introduzir a Corte Interamericana de Direitos Humanos, Órgão Jurisdicional Internacional criado pelo Pacto de San José da Costa Rica, cuja competência jurisdicional foi oficialmente reconhecida pelo Brasil em dezembro de 1998.
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Também considerou que o simples fato de uma pessoa submetida a órgão repressivo oficial, que pratica impunemente a tortura e o assassinato (como foram a operação Bandeirantes e o DOI-CODI, e como são, ainda, alguns setores das polícias brasileiras7) é ofensivo ao dever dos Estados de proteção do direito à integridade e à vida.
Ressalte-se o fato de que a doutrina e a prática internacionais muitas vezes qualificaram o desaparecimento como um delito complexo contra a humanidade, tendo a Assembléia da OEA afirmado tratar-se de uma afronta à consciência do Hemisfério, um procedimento cruel e desumano destinado a elidir a lei, em detrimento de normas que garantem a proteção contra a detenção arbitrária e o direito à segurança e integridade pessoal.
No plano normativo, os preâmbulos tanto da Convenção Interamericana e da Declaração das Nações Unidas, ambas sobre Desaparecimento Forçado de pessoas, advertem que sua prática sistemática configura um crime de lesa-humanidade.
Não é necessário lembrar que toda pessoa tem direito à integridade física, psíquica e moral, não podendo ser submetida a torturas, nem a penas cruéis ou tratamentos desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deverá ser tratada com o devido respeito à dignidade inerente ao ser humano 8.
7. Comentário de Tarciso dal Maso Jardim em seu livro Crime do Desaparecimento Forçado de ressttas - Aproximação e Dissonâncias entre o Sistema Interamerícano de Proteção dos Direitos Humanos e a 1'prática Brasileira, Brasília Jurídica, Brasília, 1999, p. 148.
8. Como enuncia o art.5° da Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 1992.
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Em consonância com o mais avançado entendimento das Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, abraço a tese de que o desaparecimento forçado de pessoas constitui-se num crime de violação permanente, que se mantém até o momento em que se desvenda o paradeiro ou o destino da vítima e se esclareçam as circunstâncias em que os fatos ocorreram, uma situação continuada que surte efeitos prolongados no tempo.
O crime de desaparecimento forçado só tem fim quando é revelado o destino ou o paradeiro da pessoa desaparecida e são esclarecidos os fatos. É o que estabelece o art. 17 da Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimento Forçado ou Involuntário, de 1992 (Assembléia Geral da ONU) e o art. 3° da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 1994.
Nesse sentido a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Blake contra a República da Guatemala, ocasião em que entendeu que os efeitos dos fatos ocorridos em 1985 prolongaram-se até 1992, quando se descobriu o destino ou paradeiro da vítima (foram encontrados seus restos mortais).
Posta a questão nestes termos, verifica-se a pertinência da pretensão veiculada nesta ação, bem como a responsabilidade da parte Ré no reprovável fato de desaparecimento forçado dos familiares dos Autores, todos participantes do movimento político denominado "Guerrilha do Araguaia".
Dos Elementos Probatórios
Tendo discorrido sobre a responsabilidade do Estado quanto à garantia do pleno exercício dos direitos humanos, cumpre analisar a alegação da Ré de inexistência de subsídio probatório.
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Questiona-se a comprovação da participação dos familiares dos Autores na guerrilha, como também a morte deles, mais ainda a comprovação da existência de relatório oficial contendo nome e qualificação dos civis mortos na ocasião.
Novamente, vislumbro como transparente a comprovação da participação dos familiares dos autores na guerrilha, bem como o desaparecimento seguido de morte.
Há documentos que considero como de valioso conteúdo probatório em favor dos autores.
O Relatório da Caravana dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, que se encontra às fls. 399/424, contém diversas informações que corroboram suas alegações.
Há fortes indícios de que as forças do governo fizeram um levníltamenlo fotográfico completo de todas as suas atividades no combate à guerrilha (fl. 386), desde as operações nos acampamentos, a vida nas cidades e lugarejos, até o registro fotográfico dos corpos de guerrilheiros mortos (fotos de fls. 543/554), que, segundo prova testemunhai, destinava-se a abalar moralmente os presos que com eles colaboravam.
Várias pessoas prestaram depoimento à Caravana, muitos dos relatos foram gravados. Entre eles: Ides Rodrigues de Brito (cujo irmão fora arbitrariamente preso e torturado), José Ferreira Sobrinho, Dom Alano Maria Roma (Bispo da Diocese de Marabá), Lauro Rodrigues dos Santos (lavrador mutilado por uma granada de mão do Exército - fl. 1296), Maria Raimundo Veloso, Joaquina Ferreira da Silva, José da Luz Filho, Lindaura Vilarense (cujo filho afirma saber onde estão sepultados guerrilheiros na mata).
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Tendo percorrido a região em que se desenvolveu a luta armada, visitando locais como São Domingos das Latas, Vila São José, Metade, Palestina, Brejo Grande, Castanhal da Viúva, as Estradas Operacionais 2 e 3, Araguatins, Araguaína, Xambioá, São Geraldo, Vila Nova, Pau Preto, Ponto Firme, Piçarra, Marcelinense, Boa Vista e Araguanã e tendo ouvido centenas de pessoas e colhido inúmeros relatos, a Caravana diz ter se deparado com um clima de terror apavorante que ainda hoje oprime os moradores da região.
Em diversas ocasiões as investigações da Caravana foram frutíferas: * um jovem identificou a participação de José Humberto Bronca no movimento, o ex-prefeito da cidade de São Geraldo afirmou ter conhecido os guerrilheiros Paulo e Dina (fl. 415), pessoas do local compareceram à casa do ex-prefeito levando informações, alguns indicaram locais onde estariam enterrados os corpos, a prisão de Dina (fl. 416) foi relatada à Caravana. Em Boa Vista do Pará a Caravana encontrou Amaro Lins, que prestou importante depoimento, tendo testemunhado a prisão de Áurea Valadão no quartel da 23a Brigada de Infantaria da Selva, em Marabá, e de Daniel Callado na Base de Operações Anti-Guerrilha do Exército, em Xambioá (fls. 418/419), e visto ambos locomoverem-se normalmente e aparentarem boas condições físicas.
A Caravana também colheu indícios do enterro de dois corpos na localidade de Pau Preto (fl. 416). Descobriram-se também os codinomes de muitos integrantes do movimento: Guilherme Lund era conhecido por Luís, Vandick era João, Jana era Cristina.
A Caravana terminou com a .firme convicção de que muitos dos guerrilheiros foram capturados com vida, deslocados do ponto de sua prisão e então desapareceram (fl. 402); de que foram presos e torturados não apenas combatentes da guerrilha, mas também numerosos elementos da população que não participavam da guerrilha, tendo desaparecido muitos dos habitantes locais; de que foram violados e sonegados cadáveres, havendo inúmeras indicações de túmulos ocultos nas florestas.
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Vale dizer que a Caravana realizada entre 25 de outubro e 04 de novembro de 1980 não se constituiu numa iniciativa isolada dos familiares. Ao contrário, contou com o apoio e a participação de setores importantes da sociedade civil, como a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, os Movimentos de Anistia, setores da Igreja Católica, parlamentares de vários estados e a imprensa (fl. 420).
Cumpre repetir: estamos diante de casos que consubstanciam a prática do delito de desaparecimento forçado ou involuntário de pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia. Portanto, a natureza dos delitos em si mesma e as circunstâncias em que foram praticados impede a produção de prova dos óbitos nos moldes tradicionais.
Com base nos diversos casos de desaparecimento forçado que teve oportunidade de apreciar, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ressalta, em seus arrazoados, que os desaparecimentos implicam, com freqüência, na execução dos detidos, secretamente e sem julgamento, seguida da ocultação do cadáver com o objetivo de apagar toda impressão material do crime e de buscar a impunidade daqueles que os cometeram. É um fenômeno diretamente ligado ao encobrimento e à destruição de provas.
Dadas as características desse delito, a Corte tem admitirio, além da prova testemunhai ou documental, também a prova circunstancial, fundada em indícios e presunções, quando deles possam ser inferidas conclusões consistentes sobre os fatos.
No julgamento do caso Blake contra a República da Guatemala, a Corte reiterou ser possível que o desaparecimento de um determinado indivíduo seja demonstrado mediante provas documentais indiretas e circunstanciais, somadas às inferências lógicas pertinentes, assim como à sua vinculação a uma prática geral de desaparecimentos.
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Essa prova indiciaria ou presuntiva resulta de especial importância quando se trata de denúncias sobre o desaparecimento, já que esta forma de repressão caracteriza-se por procurar a supressão de todo elemento que permita comprovar a detenção arbitrária, o paradeiro e o destino das vítimas.
No caso Godínez Cruz contra Honduras, a Corte entendeu não ser necessária uma prova direta que apontasse os causadores do desaparecimento como agentes governamentais, admitindo que bastava uma conjunção de indícios relevantes para fundamentar a presunção judicial.
Esse entendimento aplica-se com perfeição ao caso em tela, pois a presunção da Corte fundou-se no fato de que a vítima era alvo da repressão oficial em Honduras por praticar atividades consideradas 'perigosas', houve testemunhos de que esteve detida em mãos de autoridades, deu-se a característica omissão das autoridades no que tange às investigações e prestação de informações e ficou configurada a existência de uma prática estatal (à época) de desaparecimentos forçados.
A semelhança com o presente caso é enorme. Todos as pessoas em questão desapareceram após as investidas estatais visando o aniquilamento do movimento "subversivo"; há relatos de que muitos foram capturados com vida pelas tropas militares; o Estado tem se negado reiteradamente a fornecer informações aos familiares ou proceder a sérias investigações sobre o paradeiro das vítimas.
Também constam dos autos copias de várias cartas que os familiares dos autores enviaram ao longo dos anos em que integraram o movimento revolucionário. Subitamente, as cartas pararam de chegar, cessou-se a comunicação com os familiares que estavam no Araguaia. Somaram-se a isso as diversas informações recebidas sobre o confronto com os militares e o fracasso do movimento guerrilheiro. E o desaparecimento com morte confirmou-se pela continuada ausência que se verificou nos anos posteriores, ale uii üias de hoje.
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Por isso, não há contradição no pedido dos Autores quanto a estarem vivos ou mortos seus familiares. A morte é a conclusão lógica dos fatos, e está respaldada pelas normas dos artigos 10 e 482 do Código Civil anterior e artigos 6° e 38 do Código Civil em vigor que regulam a presunção de morte e a sucessão definitiva, a saber:
Art. 6° - A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.
Art. 38 - Pode-se requerer a sucessão definitiva, também, provando-se que o ausente conta 80 (oitenta) anos de idade, e que de 5 (cinco) datam as últimas notícias dele.
Como observam os autores (fl. 215), inexiste contradição entre buscar saber o destino de alguém e considerá-lo morto, pois a morte também é destino.
Contudo, repito, há que se ter em mente que a morte aqui é a conclusão lógica que decorre do desaparecimento somado ao fracasso do movimento revolucionário, pois a única coisa que se tem certeza é que o destino dos familiares dos autores é ignorado. O desejo de saber o que lhes aconteceu para assim proporcionar-lhes um desfecho digno é exatamente o que motiva o pedido dos Autores.
Ora, é óbvio que os autores prefeririam estar pleiteando a soltura e o reencontro com seus familiares vivos a estar requerendo o sepultamento de suas ossadas.
Portanto, repito, não vislumbro qualquer contradição no pedido da exordial, ao contrário, as incertezas são inerentes ao modo como ocorreram os fatos e decorrem, sobretudo, do não-cumprimento, por parte da Ré, das normas a que estava obrigada e, relativas aos prisioneiros e aos mortos em combate.
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O fato de os autores não terem juntado à inicial prova cabal de que seus familiares estavam mortos não enseja, de forma alguma, o indeferimento do pedido, como tem entendido a jurisprudência internacional nos casos de desaparecimento forçado.
Em casos de desaparecimento forçado, atribuir o ônus da prova exclusivamente aos familiares da vítima é, no mínimo, uma insensatez, levando-se em conta o fato de que uma das principais motivações da prática desse crime é precisamente a intenção de dissimular as provas. Trata-se de um fenômeno diretamente ligado ao encobrimento e destruição de provas.
Com esses fundamentos, tenho por suficiente e consistente o conteúdo probatório dos autos quanto à participação dos familiares dos Autores no movimento intitulado Guerrilha do Araguaia, bem como o desaparecimento deles.
Os documentos de identidade entregues ao deputado estadual Paulo César de Lima Ponteies e juntados aos autos, já bastante danificados, foram encontrados por um lavrador da região que, ao arar a terra, descobriu-os dentro de uma lata do tipo "leite Ninho". Eram, ao que tudo indica, de pessoas que teriam atuado naquela região.
Da prova documental e testemunhai restou transparente a existência da prática do Exército de identificar os corpos dos guerrilheiros mortos em combate.
As fotos de fls. 534 e seguintes revelam momentos em que o exército lida com corpos, embalando-os para, ao que parece, transportá-los. Destaca-se entre elas uma foto (fl. 129) em que jazem quatro corpos, e que, por estarem amarrados, demonstram não serpm de membros do Exército.
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É imperioso indagar-se das autoridades que reprimiram a guerrilha quem eram tais pessoas e o que foi feito de seus corpos. Em que circunstâncias morreram? Onde estão arquivadas as informações a respeito delas? Tratava-se de guerrilheiros ou de moradores da região? Não pode o Exército, sob pretexto algum, esquivar-se de prestar tais esclarecimento, sob pena de confirmar ter atuado na ilegalidade da clandestinidade. Dispositivo legal algum, nem nenhuma situação de risco à segurança nacional, faculta às Forças Armadas o extermínio, a execução sumária, de pessoas de sua própria nação.
É fato que os confrontos ocorreram em regiões inóspitas, em meio à floresta. Tem-se, portanto, que considerar a possibilidade de circunstâncias adversas que poderiam ter impossibilitado às forças militares uma atuação escorreita, dentro dos ditames legais do Estado de Direito, no que tange ao sepultamento e identificação de corpos.
Porém, mesmo a ocorrência de tais circunstâncias deve ser relatada aos familiares das vítimas em pormenores, uma vez que é direito deles saber o que realmente aconteceu.
Contudo, é totalmente improvável que circunstâncias adversas extremas tenham inviabilizado uma lícita atuação militar durante todo o tempo em que se combateu a guerrilha (aproximadamente três anos). Só se admite considerá-las em casos excepcionalíssimos, os quais cabe à Ré relatar; a menos que pretenda comprovar ter atuado o tempo todo em clandestinidade tão equânime à dos guerrilheiros, não há como negar a existência (e observância) de regras oficiais no tocante à apresentação de relatórios por parte dos soldados combatentes a seus superiores. Nem tampouco pode a Ré alegar terem as forças oficiais descumprido, durante todas as campanhas, as normas quanto ao recolhimento de feridos e sepultamento dos mortos.
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É impossível sustentar que em operações militares envolvendo um contingente de alguns milhares de soldados destinados a combater uma tímida, esmirrada aglomeração de guerrilheiros (segundo o próprio comando do movimento, este era formado por três destacamentos contendo 23 indivíduos cada) tivesse o Estado, em todas as campanhas de cerco e aniquilamento (fl. 406), perdido o controle da situação e ficado incapacitado de proceder de forma regular.
Até porque a verdade dos fatos é bem outra. É notório que a guerrilha foi dizimada, como bem atestam declarações de autoridades militares. Mesmo que tantas comprovações não existissem a esse respeito, o desaparecimento dos guerrilheiros em si mesmo atesta o insucesso do movimento.
Infere-se das provas constantes dos autos que guerrilheiros vivos estiveram em poder do Exército, que os aprisionou, interrogou, e agora se recusa a dizer como ou porque tais pessoas desapareceram.
Provas concludentes em desfavor da Ré são os depoimentos, f às fls. 154/156, que atestam a captura dos guerrilheiros ÁUREA VALADÃO e DANIEL CALLADO ainda vivos, tendo estes desaparecido após terem sido vistos em cativeiro.
Conclui-se, ainda, do exame dos autos, que corpos de guerrilheiros mortos também estiveram em poder do Exército, como atesta o depoimento de José Genuíno às fis 567 em relação a Bergson Gurjão Farias; que o Exército os fotografou e mostrou as fotuyrdfias aos ücpoentes quando presos (fls. 557, 584v, 586, 588 e 590).
Inevitável indagar: e o que aconteceu a esses corpos? Corpos sem vida não podem andar, nem desaparecer por conta própria. Muito menos prisioneiros desaparecem no ar. É imperioso, portanto, que se proceda ao esclarecimento das circunstâncias relativas ao desaparecimento dessas pessoas.
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É impreterível que a Ré responda ,a muitas outras perguntas: quais as pessoas que foram presas durante o transcorrer da Guerrilha do Araguaia; que destino elas tomaram, para onde foram aqueles presos com vida; qual é a identificação dos guerrilheiros mortos em combate; onde foram enterrados seus corpos?
Da análise dos autos dessume-se também que minuciosa investigação sobre a guerrilha foi levada a cabo pelo Exército, tendo sido elaborado um organograma contendo nomes e retratos dos guerrilheiros, identificando, inclusive, aqueles que já haviam sido mortos. Com esses fundamentos, testifico a suficiência de prova em relação ao desaparecimento forçado dos familiares dos Autores e a responsabilidade da Ré no triste episódio.
Ademais, de ser registrado - por oportuno -, o reconhecimento oficial dos fatos que tratam estes autos.
Em 1995 foi aprovado projeto instituindo a Lei 9.140, que estabeleceu um rol de pessoas consideradas mortas (136 pessoas) por terem participado, ou acusadas de participação, em atividades políticas, durante o período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e, por esse motivo, teriam sido detidas por agentes públicos, achando-se desaparecidas.
Em decorrência disso, criou-se a Comissão Especial, vinculada ao Ministério da Justiça, que, entre outras funções, buscava identificar pessoas desaparecidas não-listadas e que tivessem falecido por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas.
Tem-se, na edição dessa lei e no procedimento ali estabelecido, o reconhecimento expresso por parte do Estado da existência de uma política de desaparecimentos forçados destinada a minar dissidentes políticos durante a ditadura militar.
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Alguns Autores tiveram o desaparecimento de seus familiares reconhecido e receberam indenização.
Todavia, não há que se falar em perda do objeto da presente ação em relação àqueles que foram contemplados pelo procedimento da Lei 9.140/95, por tratar-se de postulações totalmente diversas.
Aqui se pleiteia o exercício do direito à informação, à verdade, bem como o exercício dos direitos abarcados pelo princípio do respeito à tradição de cultuar os mortos. Lá se buscava apenas o recebimento de uma indenização em face do sofrimento causado aos familiares pela truculência das forças militares do Estado.
Do Sofrimento das Famílias
Não me permito desconsiderar o sofrimento que acomete as pessoas que perdem um familiar em situação tão desumana. A intensa dor que a morte provoca agrava-se em situações como as vividas pelos autores, que tiveram, simultaneamente, mais de um familiar desaparecido na guerrilha. Somada à dor da perda tem-se aqui a angústia de conviver com os efeitos do desaparecimento forçado dos entes queridos, o destino ignorado, a opressão de um silêncio fabricado.
A esse respeito, pertinente é o entendimento jurisprudencial internacional, como no caso Caballero Delgado contra Colômbia, em que a Corte Interamericana vislumbra, nos casos de desaparecimentos forçados, uma extrapolação das conseqüências do crime, em que se atenta não só contra os desaparecidos, mas também contra seus familiares. Nesse caso, determinou-se o pagamento de justa indenização aos familiares das vítimas e o ressarcimento dos gastos com os procedimentos internos que visaram encontrar os restos mortais.
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Temos ainda o caso Neira Alegria e Outros contra o Estado do Peru, em que se considerou necessário indenizar as famílias pelo sofrimento moral. Ou ainda, como no já citado caso Velásquez Rodríguez, no qual foram considerados os efeitos psíquicos ocasionados pela violação dos direitos, tendo se constatado o sobressalto, a angústia, a depressão e o retraimento dos familiares.
No caso Blake reconheceu-se a violação à integridade física e psíquica dos familiares da vítima, entendendo que as circunstâncias do desaparecimento geraram sofrimento e angústia, além de um sentimento de insegurança, frustração e impotência perante a abstenção das autoridades públicas em investigar os fatos.
Além disso, considerou-se que a incineração dos restos mortais do Sr. Nicholas Blake, realizada pelos patrulheiros civis por ordem de um integrante do Exército da Guatemala, com a finalidade de destruir todo rastro que pudesse revelar o seu paradeiro, intensificou o sofrimento dos familiares e atentou contra os valores culturais prevalecentes na sociedade da Guatemala, e transmitidos de geração para geração, quanto ao respeito devido aos mortos.
A indefinição quanto ao paradeiro da vítima, gerada pelo desaparecimento forçado, priva os familiares da proteção do direito. Eles têm sua vida transtornada, atormentada, sua integridade psíquica e moral agredida.
Como sustenta o ilustre Juiz-Presidente da Corte Interamaricana, Antônio Augusto Cançado Trindade, no voto proferido no julgamento do caso Blake:
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"Aqui reside, a meu ver, a contribuição da Sentença da Corte Interamericana para o desenvolvimento do tratamento jurisprudencial do delito de desaparecimento forcado de pessoas, na medida em que dê precisão à posição dos familiares do desaparecido como titulares dos direitos protegidos pela Convenção Americana. Em uma situação contínua, própria do desaparecimento forcado de pessoas, as vítimas são tanto o desaparecido (vítima principal), como os seus familiares; a indefinição gerada pelo desaparecimento forçado priva a todos da proteção do direito. Não há como negar a condição de vítimas também aos familiares do desaparecido, que têm o cotidiano de suas vidas transformado em um verdadeiro calvário, no qual as lembranças do ser querido misturam-se ao tormento permanente do seu desaparecimento forcado. No meu entender, a forma complexa de violação dos múltiplos direitos humanos que representa o delito de desaparecimento forçado de pessoas tem como conseqüência a ampliação da noção de vítima de violação dos direitos protegidos".
Do Respeito aos Mortos: O Direito ao Sepultamento
O respeito aos mortos está consagrado, no plano internacional, nos dispositivos das Convenções de Genebra, que integram o ordenamento jurídico do Direito Humanitário.
Celebradas em 12 de agosto de 1949, as quatro Convenções foram assinadas pelo Brasil em 08 de dezembro do mesmo ano e aprovadas pelo Decreto Legislativo 35, de 12 de setembro de 1956, publicadas no Diário Oficial de 13 de setembro do mesmo ano e promulgadas pelo Decreto 42.121, de 21 de agosto de 1957.
Assim, a I Convenção de Genebra para a Melhoria das Condições dos Feridos e dos Enfermos das Forças Armadas em Campanha reflete em seu texto o cuidado no trato com os mortos, ao estabelecer, no art. 4°, que as disposições da Convenção aplicam-se também aos mortos que forem recolhidos.
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Esse cuidado também se vê no art. 15, que estabelece para as Partes em conflito a obrigação, em qualquer ocasião, mas particularmente após um combate, de procurar os mortos e impedir que estes sejam despojados.
Já o artigo 16 estabelece que as Partes em conflito deverão registrar, com a maior brevidade possível, todos os elementos que servirem para identificar os feridos, enfermos e mortos da parte adversária caídos em seu poder.
O art. 17 cria para as Partes em conflito a obrigação de providenciar para que os mortos sejam cremados ou enterrados, se possível, individualmente. Que tal seja precedido de um cuidadoso exame dos corpos, se possível, por um médico, a fim de constatar a morte, estabelecer a identidade e permitir a prestação de contas. Os Estados em combate estão obrigados a organizar um serviço funerário oficial, a fim de permitir eventuais; exumações, assegurara identificação dos cadáveres seja qual for a localização das sepulturas seu eventual regresso ao país de origem.
Vê-se assim, que o Direito Internacional, à época dos confrontos na região do Araguaia, já disponibilizava diversas normas relativas ao trato dos mortos em conflito armado. A essas normas estava obrigado o Estado Brasileiro, signatário das quatro Convenções de Genebra.
Não se pode alegar aplicação exclusiva das normas das Convenções de Genebra a conflitos armados de caráter internacional, uma vez que o art. 3°, comum a todas elas, destina-se a regular os conflitos armados de caráter não-internacional que ocorram em território de uma das nações contratantes.
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Esse artigo fixa uma pauta mínima de humanidade9 a ser observada mesmo nos conflitos de caráter interno, e proíbe, expressamente: os atentados à vida e à integridade física, em particular o homicídio sob todas as formas, as mutilações, os tratamentos cruéis, torturas e suplícios, as ofensas à dignidade das pessoas, as condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído.
Mesmo que não tivesse este teor o artigo 3°, os princípios gerais de direito e a analogia bastariam para estender a aplicação das normas das Convenções aos conflitos internos. Se em uma situação extrema como a guerra entre duas nações soberanas, os Estados se vêem obrigados a garantir direitos fundamentais dos cidadãos da nação inimiga, porque não o estariam quanto aos direitos inderrogáveis e inalienáveis de seus próprios cidadãos?
No âmbito do direito interno, os agentes do Estado brasileiro também estavam obrigados a respeitar os mortos. O Código Penal destina um capítulo à tipificação dos crimes contra o respeito aos mortos, e estabelece, no art. 209, pena de detenção de um mês a um ano, ou multa, a quem impedir ou perturbar enterro ou cerimônia fúnebre.
Assim como nos demais artigos do Capítulo II do Título V do Código Penal, em especial os arts. 211 e 212 que tipificam a ocultação e o vilipendio a cadáver, o que se vê tutelado é o sentimento de respeito aos mortos.
Por sua vez, a Lei de Registros Públicos estabelece, no tocante aos óbitos de membros das forças armadas:
9 REZEK, J.F. Direito Internacional Público, Ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p.376.
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"Art. 85. Os óbitos, verificados em campanha, serão registrados em livro próprio, para esse fim designado, nas formações sanitárias e corpos de tropas, pelos oficiais da corporação militar correspondente, autenticado cada assento com a rubrica do respectivo médico chefe, ficando a cargo da unidade que proceder ao sepultamento o registro, nas condições especificadas, dos óbitos que se derem no próprio local de combate."
"Art. 86. Os óbitos a que se refere o artigo anterior, serão publicados em boletim da corporação e registrados no registro civil, mediante relações autenticadas, remetidas ao Ministério da Justiça, contendo os nomes dos mortos, idade, naturalidade, estado civil, designação dos corpos a que pertenciam, lugar da residência ou de mobilização, dia, mês, ano e lugar do falecimento e do sepultamento para, à vista dessas relações, se fazerem os assentamentos de conformidade com o que a respeito está disposto no artigo 67."
O princípio da igualdade de todos perante a lei obriga que se dê a todos os cidadãos o mesmo tratamento. Assim, em combate de caráter não-internacional, como foi o da Guerrilha do Araguaia, está o Estado obrigado a proceder de uma só maneira com os mortos membros da força oficial e com os mortos que eram integrantes da guerrilha.
A LRP também disciplina o trato dado aos mortos em prisões e outros estabelecimentos públicos:
"Art. 87. O assentamento de óbito ocorrido em hospital, prisão ou outro qualquer estabelecimento público será feito, em falta de declaração de parentes, segundo a da respectiva administração, observadas as disposições dos artigos 81 a 84; e o relativo a pessoa encontrada acidental ou violentamente morta, segundo a comunicação, ex officio, das autoridades policiais, às quais incumbe fazê-la logo que tenham conhecimento do fato."
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Mesmo que disposições normativas referentes aos mortos não existissem, o direito outorgado à família de sepultar seus mortos e chorá-los segundo seu credo religioso é desmembramento do valor maior de devotar respeito aos que feneceram, integrante este dos princípios gerais do direito.
Considerando o amplo alcance das obrigações do Estado no que tange aos direitos fundamentais, tem-se que é enorme o rol de medidas possíveis de serem tomadas pelo Estado a fim de dar cumprimento à obrigação de respeitar e garantir direitos humanos, que vão variar conforme o direito a que se referem e as circunstâncias de cada caso.
A indenização dos familiares das vítimas representa uma parcela muito pequena dessa obrigação. Há muito mais a ser feito para reparar graves violações de direitos humanos, como demonstram, entre outros, os exemplos da Argentina, do Chile, da África do Sul.
Na Argentina foram criados instrumentos processuais, como a declaração de ausência por desaparecimento forçado, e administrativos como o Banco Nacional de Dados Genéticos. Já no Chile, além da instauração da Comissão sobre a Verdade e Conciliação, instituiu-se o pagamento de pensões aos familiares das vítimas, bem como de benefícios médicos e educacionais. Na África do Sul, notório foi o trabalho da Comissão de Verdade e Reconciliação que, envolvendo diversos setores da nação africana determinou a execução das mais variadas obrigações, desde retratações públicas e homenagens póstumas à construção de escolas e pagamento de indenizações, todas medidas de caráter reparatório.
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No que concerne especificamente aos desaparecimentos forçados, as famílias dos desaparecidos do Suriname, integrantes da tribo Saramaca, no caso Aloeboetoe (Corte Interamericana) requereram do Estado a adoção de várias medidas não pecuniárias, tais como: que o Presidente do Suriname se desculpasse publicamente pelos assassinatos; que o Governo desenterrasse os cadáveres das seis vítimas devolvendo-os às respectivas famílias; que a um parque, praça ou rua fosse dado o nome da tribo Saramaca; que o governo procedesse a criteriosa investigação sobre os assassinatos, punindo os criminosos.
Em outra ocasião, caso Neira Alegria contra o Peru, a Corte Interamericana entendeu que o Governo está na obrigação de fazer todo o esforço possível para localizar e identificar os restos das vítimas e entregá-los aos seus familiares. O mesmo ocorreu no caso Castillo Páez, em que a Corte também determinou ao Estado do Peru que entregasse os restos mortais aos familiares das vítimas.
A entrega dos restos mortais das vítimas aos familiares, a fim de que possam ser dignamente sepultados, e o fornecimento das informações sobre a morte, deve constar do rol das medidas internas de otimização dos direitos humanos, capazes de dar cumprimento à obrigação estatal. No que diz respeito ao confronto armado, o Estado Brasileiro também violou normas de caráter internacional a que estava obrigado. E são elas as constantes da III Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativa ao tratamento dos prisioneiros de guerra.
Esse documento estabelece diversas normas de proteção aos prisioneiros, conceituando como prisioneiros, entre outros, os membros de movimentos de resistência organizados.
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Em nenhum momento está a parte vitoriosa autorizada a executar sumariamente os inimigos capturados. Ao contrário, todo o documento destina-se a proclamar o direito que os prisioneiros de guerra têm de serem tratados com humanidade, proibindo e considerando como infração grave à Convenção todo ato ou omissão ilícita pela parte vitoriosa que tenha como conseqüência a morte, ou ponha em grave perigo a saúde de um prisioneiro de guerra em seu poder.
Entre outros, aplicam-se as proteções ao direito à integridade física, o direito ao respeito à pessoa humana, o direito à honra, o direito à proteção contra atos de violência ou de intimidação, contra os insultos e a curiosidade pública, bem como são proibidas quaisquer outras medidas de represália contra os prisioneiros de guerra.
Não é o fato de o movimento ter caráter de contestação da estrutura vigente que autoriza seus oponentes/combatentes a cometerem atrocidades. Por isso, estão amparados pelos direitos de guerra movimentos populares como o da Guerrilha do Araguaia.
Mesmo que o Estado queira esquivar-se do cumprimento de normas internacionais a que estava obrigado à época dos confrontos, não pode fazê-lo em relação ao ordenamento interno vigente. As normas existentes à época já preconizavam garantias para as pessoas detidas e acusadas.
Do Acesso às Informações Militares
Uma das conseqüências do processo de democratização da nação brasileira foi o fato de que as liberdades e direitos fundamentais assumiram posição de primazia em relação aos direitos do Estado.
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Entre diversas outras garantias fundamentais, a Constituição Federal proclama o direito de todo cidadão a receber dos órgãos públicos informações que sejam de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral. Essas informações deverão ser prestadas no prazo de lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
A parte inicial desse dispositivo, art. 5°, inciso XXXIII, da Constituição Federal, tem aplicação imediata ao caso em exame, uma vez que os Autores também pleiteiam o acesso às informações mantidas pela Ré sobre seus familiares.
Cumpre ressaltar que a hipótese dos autos não se enquadra na ressalva do referido dispositivo, pois não há que se falar em risco algum à segurança da sociedade e do Estado decorridos trinta anos dos primeiros confrontos.
Há, sim, que se falar em risco à construção de um estado democrático g-irantidor dos direitos e liberdades fundamentais de seus cidadãos na recusa da Ré em fornecer tais informações.
Até porque, não revelar as circunstâncias em que se deram os desaparecimentos, detalhando os fatos e suas motivações a fim de que possam ser descobertos os paradeiros das vítimas ou encontrados seus restos mortais, é fazer durar a ausência que tortura os familiares; corresponde a auxiliar aqueles que cometeram os delitos, fazendo perfeitos os seus crimes.
Por ocasião do julgamento do caso Castillo Páez contra o Peru, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que, na hipótese de que dificuldades de ordem interna impedissem identificar os indivíduos responsáveis pelos delitos do desaparecimento forçado, subsiste o direito dos familiares da vítima de conhecer qual foi o seu destino e, conforme o caso, onde se encontram seus restos.
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Já a Comissão Interamericana de Direitos Humanos entendeu ter o Peru infringido o direito à verdade e à informação, devido ao desinteresse do Estado em esclarecer os fatos apurados neste caso.
O direito a resgatar a verdade dos fatos ultrapassa as pessoas dos familiares e alcança toda a sociedade, a qual não interessa que tais barbáries sejam reproduzidas.
Ademais, tenho por concludentes as últimas provas acostadas aos autos quanto à existência de informações militares detalhadas sobre os fatos em análise, das quais infere-se o seguinte:
1- Se ao Ministro da Marinha é possível relatar, porque consta dos arquivos do Ministério, que Gilberto Olímpio Maria e Guilherme Gomes Lund foram mortos em 25 de dezembro de 1973 é porque forças militares tiveram acesso aos seus corpos (fl. 832), tanto que seus familiares receberam indenização a título reparatório por força da Lei 9.140/95 (fl. 782);
2- Se pode relatar que Hélio Luiz Magalhães Navarro foi preso gravemente ferido e morto em 14 de março de 197410, conclui-se que seu óbito ocorreu quando em poder das forças militares (fl. 832);
3- Se pode informar que Idalísio Soares Aranha Filho foi morto por ter resistido ferozmente é porque existem informações a respeito desse confronto e das circunstâncias em que se deu sua morte (fl, 832).
10 Em que pese não se tratar de familiar dos autores, a alusão faz-se pertinente como prova em desfavor da Ré.
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Ademais, tenho plena convicção de que o insucesso dos trabalhos conduzidos pela Comissão Especial do Ministério da Justiça, em que pese seus esforços, posto que conseguiram descobrir apenas duas ossadas passíveis de pertencerem a guerrilheiros (fl. 848), deveu-se à ausência de informações precisas, mantidas sob sigilo pelas forças armadas, que entendo capazes de conduzir à localização dos corpos.
À época do ajuizamento da presente ação, o cenário político brasileiro era de instabilidade, tendente ao término da ditadura militar e ao início do processo de democratização. Felizmente, hoje, mais de vinte anos depois, embora haja instabilidade política, econômica e social no cenário nacional, o ataque às garantias e liberdades individuais não permeia deliberadamente as políticas públicas.
Ao contrário, o respeito à dignidade da pessoa humana assumiu lugar de destaque no discurso político nacional.
O texto da Carta Política de 1988 retrata a ruptura com o regime autoritário, constituindo-se no marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, já que atribui aos direitos e garantias fundamentais relevância extraordinária.
O valor da dignidade humana, içado ao posto de princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1°, inciso III) impõe-se como parâmetro a orientar o trabalho do intérprete do Direito, bem como expande-se para além do universo constitucional e influencia todo o ordenamento jurídico pátrio.
Ilustra essa evolução a adoção do Programa Nacional de Direitos Humanos, aprovado pelo .Ministério da Justiça em conjunto com diversas organizações da sociedade civil. O Programa pautou-se pelas diretrizes da Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada consensualmente na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho de 1993.
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Esse Programa destina-se a proteger a existência humana com medidas de combate ao arbítrio e à impunidade, estancando a banalização da morte, a violência contra os cidadãos (inclusive a decorrente da máquina do Estado) e a prática do extermínio.
Na esteira dessa evolução social, cultural, política, faz-se imperioso o deferimento do presente pleito, uma vez que os Autores e seus familiares foram vítimas de gravíssimas violações de direitos humanos, todas abarcadas pela prática do delito complexo do desaparecimento forçado de pessoas: foram vítimas de extermínio sumário, não tiveram acesso a nenhuma das garantias asseguradas aos acusados e, ao que tudo indica, tiveram seus restos mortais violados, profanados ou ocultados.
A hedionda prática do desaparecimento forçado de pessoas é conseqüência do desenfreado arbítrio de um Estado autoritário e voraz no ataque à dignidade da pessoa humana. Um modelo de Estado que a sociedade brasileira luta fervorosamente para não ver reproduzido, e cujo repúdio incumbe a todos os cidadãos, mormente aos aplicadores do Direito.
Os múltiplos direitos ofendidos pela prática do desaparecimento forçado (o direito à vida, à integridade física, etc) não podem ser reparados. São, por natureza, não-restituíveis.
Mas podem ser,contemplados o direito à verdade dos fatos, aos restos mortais para um sepultamento digno, medidas necessárias para que se dê o reconhecimento da dignidade inerente à pessoa humana.
Contemplação que se faz urgente, não apenas em honra àqueles que se foram e consideração aos familiares presentes, mas, também, como um legado para ,as gerações que virão, posto que estas têm direito a uma memória integral capaz de auxiliá-las a não cometerem os mesmos enganos.
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Ante ao caráter essencialmente vivo e mutante da dinâmica social, não pode o aplicador do direito quedar-se surdo às exigências que lhe são feitas, sob pena de dar à lei uma finalidade que não lhe é própria, engessando, imobilizando as manifestações da própria vida. É necessário dar à lei uma aplicação humana e socialmente útil.
O deferimento do presente pedido é medida que reputo atender aos fins sociais do direito e às exigências do bem. comum consubstanciadas na persecução da justiça e da equidade; faz aplicar ao caso concreto o princípio de respeito à dignidade da pessoa humana que informa as normas positivas de caráter constitucional; tem em conta as profundas transformações por que passou a sociedade brasileira nas últimas décadas. Cabe ao intérprete do Direito promover a aproximação entre o sistema interamericano de proteção de direitos humanos e a prática institucional brasileira, numa tentativa de minimizar o abismo existente entre eles.
Nesse sentido é que foi firmado, aos 12 de junho de 2000, o Termo de Cooperação Técnica entre o Superior Tribunal de Justiça e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com a adesão do Tribunal Regional Federal da 1a Região em 28 de novembro de 2000, cujo objetivo é o de desenvolver ações no campo dos Direitos Humanos.
Em particular, merece menção a letra "h", da Cláusula Primeira do Termo, que estabelece como objeto do acordo "promover a difusão de documentos, decisões e jurisprudência da CIDH no âmbito dos Poderes Executivo e Judiciário".
Lembrando que todos os casos citados no presente arrazoado foram submetidos à Corte Interamericana de Direitos Humanos pela própria Comissão, a alusão a eles como fundamento jurisprudencial/doutrinal da decisão em tela reveste-se da maior pertinência, bem como atinge os fins colimados no referido acordo.
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Tendo em vista as inúmeras provas carreadas aos autos, bem como os antecedentes jurisprudenciais internacionais e o respaldo doutrinário, tenho por possível, materialmente exeqüível e pertinente o pedido dos autores.
Com esses fundamentos, testifico que os familiares dos Autores foram mortos e "desapareceram" pela ação dos prepostos da Ré na região do Araguaia, bem como que a Ré detém as informações necessárias ao estabelecimento da verdade quanto ao desaparecimento dessas pessoas, mais ainda, ser capaz de indicar os diversos locais em que se encontram seus restos mortais.
Ante ao exposto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO para DETERMINAR:
1- a quebra de sigilo das informações militares relativas a todas as operações realizadas no combate à Guerrilha do Araguaia;
2- à Ré que, no prazo de 120 (cento e vinte) dias, informe a este Juízo onde estão sepultados os restos mortais dos familiares dos Autores, mortos na Guerrilha do Araguaia, bem como para que proceda ao traslado das ossadas, o sepultamento destas em local a ser indicado pelos Autores, fornecendo-lhes, ainda, as informações necessárias à lavratura das certidões de óbito;
3- à Ré que, no prazo de 120 (cento e vinte) dias, apresente a este Juízo todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à Guerrilha, incluindo-se, entre outras, aquelas relativas aos enfrentamentos armados com os guerrilheiros, à captura e detenção dos civis com vida, ao recolhimento de corpos de guerrilheiros mortos, aos procedimentos de identificação dos guerrilheiros "mortos quaisquer que sejam eles, incluindo-se as averiguações dos técnicos/peritos, médicos ou não, que desses procedimentos tenham participado, as informações relativas ao destino dado a esses corpos e todas as informações relativas à transferência de civis vivos ou mortos para quaisquer áreas.
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Para o integral cumprimento desta decisão DETERMINO à Ré que, sendo necessário, proceda à rigorosa investigação, no prazo de 60 (sessenta) dias, no âmbito das Forças Armadas, para construir quadro preciso e detalhado das operações realizadas na Guerrilha do Araguaia, devendo para tanto intimar a prestar depoimento todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado de quaisquer das operações, independente dos cargos ocupados à época, informando a este Juízo o resultado dessa investigação.
Ultrapassado o prazo de 120 (cento e vinte) dias sem o cumprimento integral desta decisão, CONDENO a Ré ao pagamento de multa diária que fixo em R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Custas em ressarcimento.
Verba honorária pela Ré, que arbitro em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa.
Sentença sujeita ao reexame necessário.
Registre-se, íntimem-se.
Brasilia,,30 junho de 2003.
SOLANGE SALGADO
Juíza Federal Tifulardk]/3 Vara da SJDFp. 46
DDHH en Brasil
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